PREÂMBULO
Diz a lenda – e também Ruy Castro em Chega de saudade – que, em 1956, na tentativa de entender os muitos fracassos acumulados e colocar alguma ordem na vida, João Gilberto se trancou na casa da irmã Dadainha, em Diamantina. Nos oito meses de reclusão em Minas Gerais o jovem músico (tinha 25 anos) praticamente não saiu à rua. Passou a maior parte do tempo de pijama tocando violão - muitas vezes no banheiro, para aproveitar a acústica - e cantando baixinho enquanto a sobrinha dormia. João estava à procura de algo que não sabia exatamente o que era, mas intuía. Quando por fim foi embora, rumo ao Rio de Janeiro, levava consigo a poção mágica: tinha encontrado a batida da bossa nova.
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Passam das dez da manhã, é verão em Lisboa, e tomo o café da manhã com Juan Gabriel Vásquez num restaurante em frente à casa em que Fernando Pessoa nasceu, no Bairro do Chiado. O colombiano está na cidade para receber mais um prêmio, desta vez o Casa da América Latina pelo romance El ruído de las cosas al caer, livro publicado em 2011 e traduzido em Portugal em 2014. Eu lhe conto a história de João Gilberto para dizer que vejo paralelos entre esse período de enclausuramento do músico brasileiro e os meses que ele, Juan Gabriel, passou na Bélgica, quando cheio de incertezas e dúvidas pediu abrigo a um casal de amigos. “Absolutamente, acho que a comparação é muito acertada, não conhecia esse episódio”, responde. E dá detalhes da temporada em que esteve em Xhoris, uma “pequeninha aldeia entre duas pequenas aldeias a 20 minutos de Liege”, quando tinha 25 anos. “Naquela época, eu tinha terminado o meu segundo romance e antes de publicá-lo já estava descontente, assim como com o anterior. Achava que eles não funcionavam, que eram trabalhos de aprendiz e o pior: não sabia como fazer diferente. Era uma sensação de fracasso e uma necessidade de avaliar o que estava acontecendo. Eu era uma pessoa capaz de escrever frases, mas não tinha nada a contar, não havia nada detrás das frases que eu escrevia. Não tinha encontrado os meus temas, as minhas obsessões. Claro que não sabia, não com estas palavras, que era isso o que faltava. O que sabia era que estava completamente desorientado e achava que provavelmente a literatura não era para mim.” Uns anos antes havia desembarcado em Paris com um propósito claro, tornar-se escritor. Embora tivesse publicado alguns livros durante esse período na capital francesa, achava que estava muito longe do seu objetivo. Precisava se isolar para tentar organizar as ideias. “Era uma casa grande, os filhos desse casal já tinha ido embora, e eles me disseram: traz as tuas coisas e fica o tempo que quiser. Estive num quarto do terceiro andar, trancado, até descobrir se a literatura era mesmo para mim e que tipo de literatura, que tipo de escritor eu queria ser.” Naqueles dias de 1999, o que Juan fez foi basicamente ler, escrever e pensar. Até que descobriu, como o Gilberto em 1956, o que era aquilo que imaginava que queria e sabia fazer.
Não é a primeira entrevista que faço com Juan Gabriel. Já tínhamos conversado uma vez, em Oaxaca, no México, num festival em que ele tinha sido escolhido, numa votação informal, o escritor mais atraente do encontro. Está sempre bem-vestido, penteado e barbeado, e responde com educação e paciência às perguntas. Dessa mesma maneira afável atende os leitores. Não faz o perfil do escritor atormentado, que bebe e fuma muito e escreve quando tem rompantes de genialidade. A disciplina faz parte do seu trabalho, me contou daquela vez. “Sempre acreditei que a tarefa de escrever um romance requer de muito tempo perdido. Em quatro horas de trabalho, uma pessoa passa três horas olhando para teto, e há uma última hora em que escreve duas páginas, e esse é o trabalho de um dia.” Foi essa disciplina de isolar-se numa casa de campo na Bélgica para refletir, fazer ensaios de escritas e ler que permitiu a Juan Gabriel descobrir o que queria fazer como escritor. “E de repente você descobriu que queria escrever sobre a Colômbia, sobre a história da Colômbia e os seus mortos?”, pergunto no café da manhã em Lisboa. “Não, eu sempre tinha querido falar sobre a Colômbia, mas pensava que não tinha o direito de fazê-lo. Eu descobri naqueles dias que eu podia escrever sobre o meu país”. “E por que pensava que não podia escrever sobre a Colômbia?” “Por uma sensação que eu sempre tive, uma tensão que eu tinha por não entender a Colômbia, de não entender nem sua a sua história nem a sua política, nada. Via o meu país como um lugar escuro onde eu não sabia exatamente o que acontecia”, explica. “O que eu entendi na Bélgica, por certas leituras e por um processo interno de reflexão, foi que o fato de não entender que era a melhor justificativa para escrever sobre, porque a literatura é isso: um exercício de exploração. Não se trata de contar o que já se sabe e domina, senão procurar zonas escuras. Descobri isso, ou intuí – não via tão claramente como explico agora -, nesses dias, e foi quando começou um processo de cura dentro de mim. Naqueles dias, decidi que ia me casar com a minha mulher e lhe propor de irmos morar em Barcelona.” E assim foi, no final daquele ano casaram-se na Colômbia e no começo do ano seguinte chegaram à Catalunha, sem saber o que fariam, sem conhecer praticamente ninguém, mas decididos a fazer vida ali. Juan Gabriel Vásquez trabalhou num revista, fez traduções, deu aulas em oficinas literárias, mas, acima de tudo, e com uma determinação invejável, leu e escreveu, e preparou-se para ser o escritor que hoje é: alguém preocupado com a violenta história do seu país, com os mortos de seu país, com o futuro do seu país.
Em 2001, Juan Gabriel publicou um livro de contos com histórias que passavam na França e na Bélgica, muitas delas escritas durante o retiro na casa dos amigos. Ali, naqueles textos em que a Colômbia ainda não está, o escritor já estava, já havia encontrado a sua voz. “Veja esses contos como produto de uma certa maturidade. Ali exploro temas que depois percebi que estão em todos os meus livros, como a solidão, a dificuldade que há nas relações humanas, a conflito geracional entre pais e filhos, o passado, a memória”. Três anos depois, no romance Los Informantes as obsessões de Juan Gabriel já apareciam com força: a memória, individual e coletiva, a maneira como a História com maiúscula interfere nas vidas privadas de todos nós, e a história de (e da) violência na Colômbia, temáticas que se repetem em La historia secreta de Costaguana, de 2007. Com El ruído de las cosas al caer, livro que lhe rendeu o prestigiado prêmio Alfaguara, Juan Gabriel Vásquez volta à essas questões, mas, dessa vez, desde uma perspectiva mais pessoal, aborda o período de extrema violência que a Colômbia viveu nos anos 1980 e 1990 por causa do narcotráfico e de Pablo Escobar. Algo que viveu muito de perto. “Todos os colombianos que vivemos naquela época podemos contar um episódio em que fomos tocados pela asa do anjo (metáfora que usa no livro para descrever esse momento em que um acontecimento histórico se cruza com as vidas pessoais e as altera). Em 1993, decidi que queria ser escritor e que iria embora do país. Eu era um leitor compulsivo de literatura latino-americana e passava o tempo que pudesse em sebos, que era o que o meu dinheiro permitia, procurando livro, e também matando aulas de Direito. Um dia, fui caminhando até uma dessas livrarias, que também era uma papelaria. Quando cheguei, havia muito barulho de crianças e mães, era o primeiro dia da volta às aulas. Pensei: não quero ficar aqui. Continuei caminhando e, quando dei a volta na quadra, escutei o estrondo. Um carro-bomba tinha explodido em frente à papelaria, que fica ao lado da Câmara de Comércio de Bogotá. Foi um atentado do Pablo Escobar e aquela bomba matou 25 pessoas, entre elas muitas mães e filhas que estavam na papelaria. Ali senti que tinha passado muito perto de mim.”
Na Historia secreta, há um personagem que ruma a Londres porque tem medo do futuro, está cansado de que os acontecimentos históricos e violentos do país lhe atravessem a vida e mudem os seus planos. Quero saber de Juan Gabriel se a sua ida para Paris nos anos 90 também não tinha esse objetivo de “fugir” da História. “Hoje, eu me dou conta que, sim, mas naquele momento eu estava absolutamente convencido de que a única razão que me levava a Paris era que eu queria ser escritor. Queria seguir os passos de modelos para mim, como García Márquez, Cortázar, Carlos Fuentes. Todos eles passaram por Paris. E, principalmente, Vargas Llosa, que foi para lá para ser escritor. Eu li Pez en el água, livro em que ele conta isso, e fiquei absolutamente fascinado, pensei que era o mesmo que aconteceria comigo. Ou seja, pensei que ia embora da Colômbia para ser escritor. Com o tempo, vi que não era só por isso, que havia uma razão subterrânea, que era escapar da violência. Desde os 11 anos, eu não conhecia outra coisa que não o medo. Com um pouco de distância, eu percebi que vivi uma infância em guerra”.
No final do ano passado, Juan Gabriel Vásquez publicou La forma de las ruínas, livro em que durante quase 500 páginas procura entender dois momentos-chaves da violência em seu país: os assassinatos dos políticos Rafael Uribe Uribe, em 1914, e de Jorge Eliécer Gaitán, em 1948. Mortes que aconteceram há muitas décadas, mas que têm consequências até hoje nas vidas dos colombianos. “Juro que pensei, ao terminar El ruído de las cosas al caer, que tinha saldado minhas contas pessoais com a violência que fez parte da minha vida. Agora, parece-me incrível não ter sido capaz de compreender que a violência que nos pertence não é só aquela que fez parte da nossa vida, mas também outras, as de antes, porque todas estão ligadas, ainda que os fios que as unem não sejam visíveis, porque o tempo passado está contido no tempo presente, ou porque o passado é nossa herança sem benefício de um inventário. No final, acabamos herdando tudo: a sensatez e as desmesuras, os acertos e os erros, a inocência e os crimes”, escreve no início do romance.