Enquanto observa o repórter tomando refrigerante, o novo imortal da APL revela seus olhar sobre tragédias e belezas
Luís Fernando Moura
Parágrafo único é o da dieta. Nada de Coca-Cola, pois “para a saúde é uma tragédia”. Numa manhã em sua residência na Praça de Casa Forte, Roque de Brito Alves embrulha um punhado de papéis de jornal do dia para conceder entrevista, enquanto observa encantando os trópicos artificiosos de Burle Marx, que por ora demarca: “É sua primeira obra recifense, é linda”. Lar doce lar, logo nos traz uma latinha de Coca, gentileza, enquanto se escuda, diz que prefere champanhe – trincheira elegante na batalha mercadológica entre saxões e franceses. “Quando surgiu o refrigerante, os americanos diziam ‘se vocês não comprarem a Coca, nós não importamos o champanhe’. Inevitável.
Roque é hieroglífico. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito do Recife e professor universitário, publicou cerca de 30 livros sobre Direito Penal e Criminologia – não sabe bem –, formou-se altruísta, caprichosamente enciclopédico e ícone do mecenato pós-moderno. Herdou do pai, José de Brito Alves, o amor pela alta cultura impressa em porcelana, que colecionou durante toda a vida, ou na retórica em tribuna penal. Fez-se orador de verdades em rodapé, em que causos e nomes vêm sempre precedidos por alusões a um passado dilatado, em geral verbetes bibliografados entre cânones da arte ocidental ou historietas recortadas de fait-divers. Este ano, tornou-se um imortal da Academia Pernambucana de Letras, como se não fosse a morte dogma shakespeariano. Não esqueceu. “Como seres humanos, somos ‘pobres mortais’, pois somos feitos de um barro muito frágil, limitados pelo tempo e pelo espaço, sem a posse absoluta da ciência ou da arte, sempre angustiados na eterna luta diária entre o bem e o mal”, proferiu no discurso de posse. Entregou-nos o texto impresso em caderneta, parágrafos enumerados como jurisdição pessoal.
“A gente morava naquela velha rua de Barão de São Borja, que agora está uma tragédia, só tem ladrões. No domingo, meu pai abria a janela da sala de visitas, dava para a ver as peças de porcelana guardadas naquela sala grande”, lembra Roque. Arrisca soar sempre trágico, pois repete o termo como mantra nostálgico, mas semblante e filosofia ostentam serenidade humanista, ditam que o maniqueísmo é manco. “A Criminologia tem um enfoque diferente do Direito Penal. O Direito Penal não quer saber se o sujeito é jovem, é pernambucano, é gaúcho, é do interior, mas o crime, antes de ser um problema jurídico, é um fenômeno social”. À tragédia, fica o fardo de determinar a sinuosidade da atitude humana, pois crimes são sempre fruto de “paixão” – escolhas vitalícias, como religião ou carreira.
Roque produz autoficção encadernada em ciência jurídica, apaixonado pelo crime como os criminosos, mas sem ter provado a rigidez do banco dos réus. Prefere a teleologia do delito, espiando como voyeur em plenária. “Na advocacia criminal, a gente encontra casos que vão além de qualquer imaginação. A grande ficção hoje é a própria vida”, diz. Enquanto descreve a sordidez do crime, desenha radiografia das grandes histórias contemporâneas, desconfortável por sua imprudência moral – são elas que agendam nosso imaginário homicida: Von Richthofen, Nardoni. “O que mais tem hoje são famílias desintegradas, aí vem o choque com a madrasta, com a mulher, do marido com a esposa, do pai com o filho. Antes havia um respeito excessivo”.
Roque reclama a moralidade rechaçada pelo capitalismo, onde o bem maior é sempre feito de matéria. “Os crimes contra o patrimônio, se você comparar com os crimes contra a honra, é uma palhaçada”. Verbetes são vários: “injuriar, difamar, caluniar”. Mas, não, “se você ofende uma pessoa, é tão ridícula a pena se comparada a alguém que pegou um pão. O que vale é o patrimônio e os bens materiais e econômicos”.
Pausa para as fotografias. Roque sugere “colocar um paletozinho”, sai mais bacana. Vem outra latinha de Coca para a fotógrafa. Parágrafo único, etiqueta social para a sabatina. Enquanto se ajeita, o advogado relembra criminosos, tipos esplendorosos que suplantam os da ficção. “Exemplo clássico é aquele canibal americano que matava pessoas, esquartejava, colocava no refrigerador e, dia após dia, se alimentava de uma parte do corpo. O outro, que matava e enterrava os corpos dentro de casa, tinha um cemitério particular”. São os “loucos morais”, diz. “Eles não sentem nada, não gostam de ninguém, não querem que ninguém goste deles”. Não adianta cerimônia, encarceramento ou psiquiatria, pois “eles não têm sentimento de culpa”. Estatísticas de defesa: “Segundo a ONU, de 25 pessoas no mundo, três são psicopatas”.
O arquetípico mal, encarnado entre nós? “São doentes. Têm que ser afastados porque são camaradas perigosos. Muitos não têm culpa de nada, nascem assim, ou têm má educação. Pode começar de pequeno, a mãe acha graça, ‘o menino é treloso, né’? Pega um gato e bota um foguete no rabo, coloca a lagartixa numa chapa quente de fogão”. Mais verbetes: “serial killers, esquizofrênicos, psicopatas, maníacos por perseguição”. Já defendeu de todos, diz Roque. Na Avenida Guararapes, um deles matou o conhecido da repartição, queria a aposentadoria e todo o custo. Sem pestanejar, carregou consigo uma arma de fogo e uma peixeira, “caso o revólver falhasse”. Outros verbetes: “Delirantes, ciumentos, paranoicos, doentes mentais, passionais”. “Os calmos, bem tranquilos, são os mais perigosos”.
Mas explosão não inventa, espalha migalhas. Thomas de Quincey, inglês encantado, dizia que o homicídio é uma das belas artes – “um exagero!”, exclama Roque. O crime deve ter seu fascínio, mas porque brilha em idealismo platônico. O assassinato, feito para a fruição pelos artistas, apenas reforma seus ornamentos. “Os grandes autores da literatura tiveram uma intuição, mesmo antes dos cientistas e dos juristas”. Seriam bons clientes os personagens de Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Dante – réus milenares, mas ainda incômodos. Mais à frente, os de Shakespeare – “o maior de todos” – ou Dostoiévski. “Quando eu vou defender um caso de crime passional, não quero saber de ciência, eu levo Otelo”. Roque prefere o drama shakespeariano, trágico embalado em blockbuster. “Ele foi o maior entendedor das relações humanas. Fez análises que a ciência só provaria no século 19. A descrição de Otelo é perfeita para tratar do ciumento. Quando diz, por exemplo, ‘matei por honra, e não por ódio’”.
Ao que Roque indica, o crime contemporâneo é uma paráfrase algo visceral dos tipos condenáveis da ficção ocidental. Só de Shakespeare, lembra
Hamlet, “o criminoso louco”, MacBeth, “o criminoso com ambição política”, Ricardo III, “criminoso com complexo de inferioridade”. Há cerca de quatro meses, acompanhou caso de uma mulher abandonada pelo marido que, por vingança, resolveu matar os dois filhos. “Isso é Medéia, de Sófocles, 400 antes de Cristo. Pensou ‘fui abandonada, então vou causar a ele uma dor eterna’. Mexeu com inocentes que não tinham nada a ver”. Verbetes: “Luxuriosos, perdulários, egoístas”. Está tudo no Inferno de Dante, diz. “Crime e castigo, de Dostoievski, falou em complexo de culpa antes de Freud. O nosso cangaceiro está em José Lins do Rêgo, Jorge Amado”.
Adendo, processo penal não absolve por emoção ou paixão. Longe da aura dos tempos clássicos, estamos fadados à manifestação mundana da maldade. “O problema é que nós, latinos, somos mais passionais que racionais. Em qualquer situação de drama, a gente mata o outro por besteira”. Terrível. Sófocles, lembra Roque, dizia que “na natureza existem coisas terríveis, terremotos, vulcões. A pior é o homem”. Redenção, para um humanista, é que há algo mais complexo nesta longa história. “Imagine, um menino não tem um tênis bom, mata o outro para a roubar. Vivemos numa sociedade de consumo e, ao mesmo tempo, somos consumidos por ela. A perversidade humana é incrível, falam em pena de morte, mas a solução para o crime é mais complexa.”
Prisioneiro das contingências da natureza humana, o crime de Roque é ser um “neurótico pacífico”, amante de detalhamento em ouro em relevo ou brunido, pinceladas finas e pouco errantes. Parágrafo único é amar a História ocidental – o rococó, o barroco, o neoclássico, o neorrococó –, registrada em suas peças de porcelana, mais de 70. No terraço em frente a Burle Marx, três armários sucateados são os últimos que restaram de 12 grandes vitrines onde guardava o montante, hoje doado ao Museu do Estado de Pernambuco. “O colecionador acumula vitórias quando consegue comprar uma peça. Essa aqui mesmo, levei dez anos para conseguir”, suspira, apontando imagem em catálogo colorido. O maior acervo de porcelana do Brasil, destaca, tem folderes que rodam museus europeus, países onde descobriu amigos. Aquela peça foi doada por Napoleão III a D. Pedro II. Já o jarro ali no canto estava exposto no Parque Imperial de São Pedro Cristóvão, também do imperador. Do fetichista ao mecenas, Roque lutou pela obras – aventuras até dissimuladas, mas sempre honestas – e agora as entregou, com humanismo bem apessoado e gentil. “Foi difícil, mas doei para que o povo pudesse conhecer. Se a arte nasce do povo, vamos deixar o povo ter acesso a ela”. Um pedacinho de tragédia lícita.
Luís Fernando Moura é Jornalista