02 Heloisa Buarque foto marcelo correa
 
“A cultura dos excluídos é a grande novidade e força do Brasil neste século 21.” A frase é de Heloisa Buarque de Holanda, professora, editora, crítica literária e pesquisadora. Há uns anos, ela se aproximou da produção artístico-cultural das periferias, de onde não quis mais sair, por considerá-la vibrante. 
 
“Comecei a perceber a força do hip-hop e de outras manifestações jovens e me embrenhei no campo e no assunto”, conta ela, que tem estudado “os excluídos” tanto do ponto de vista histórico da formação e desenvolvimento cultural das favelas, no século 19, como sob efeito da globalização, das redes sociais e das novas mídias digitais. 
 
“Hoje, a verdadeira literatura marginal é aquela feita na periferia”, esclarece, passados 40 anos da publicação da antologia 26 poetas hoje, em que ela reuniu autores da geração mimeógrafo, um projeto ferozmente anticanônico e que se tornou ícone da poesia nacional. 
 
Heloisa se aproximou do seu novo campo de estudo em 1993, por ocasião das chacinas da Candelária e de Vigário Geral, no Rio de Janeiro. “Muitos intelectuais indignados se aproximaram das favelas e começaram a desenvolver projetos inclusivos. Nesse momento, percebi a força da cultura como recurso para transformação de comunidades e organizei um seminário na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) chamado ‘Sinais de Turbulência’ para discutir a questão. Nunca mais me afastei desse trabalho”, diz. 
 
Assim criou a Universidade das Quebradas, um laboratório para produtores culturais das periferias que trocam conhecimento e know how com professores e pesquisadores da UFRJ. “A troca é incrível e mostra como a cultura da periferia tem sido silenciada e mesmo rejeitada durante tanto tempo, e ao mesmo tempo explicita sua força e presença no tecido urbano.”
 
Cidade partida, de Zuenir Ventura e Cidade de Deus, de Paulo Lins, são livros que chamaram a sua atenção para o tema que estava no imaginário simbólico do Rio de Janeiro, cidade que ela, nascida em Ribeirão Preto (SP), adotou há muito tempo. “Daí pra frente passei a estudar autores como Ferrez, Sergio Vaz, Sacolinha, Dinha e tantos outros que compõem a nova literatura marginal, como eles autonomeiam a própria produção.” 
 
Entre as manifestações que acompanha, ela cita os saraus da Cooperifa, de São Paulo. “Estive várias vezes nos encontros. Desperta emoção! É lindo ver a poesia alimentando tantos sonhos e empoderando tanta gente. Das melhores coisas que me aconteceram na área da cultura”, diz. Questionada se já pensou em organizar uma antologia com poetas/escritores da periferia, ela lança: “Não faria isso porque os poetas das periferias têm competência para fazê-lo. Respeito esse território. Já temos algumas antologias históricas nesse sentido e todas muito importantes.”
 
Mas, além da literatura, ela cita outras manifestações pelas quais jovens da periferia conseguem impor sua voz no Brasil: os músicos Mano Brown, MV Bill, Ecio Salles, o agitador cultural Junior Perin e o dramaturgo Marcus Vinícius Faustini, todos exemplos de resistência cultural. Ainda fala da cantora Valesca (Popozuda) e dos rolezinhos nos shoppings em São Paulo, ocorridos em 2013. 
 
“Valesca é entretenimento e é carismática, e dessa forma é natural que seus memes peguem como pegou o ‘beijinho no ombro’. Os ‘rolezinhos’ são os famosos flash mobs, ou seja, encontros episódicos mobilizados pela internet, como são as novas manifestações de rua. Isso, nos templos do consumo, tem um sentido bem forte de crítica à exclusão econômica.”
Em sua aproximação com a periferia, a pesquisadora percebeu que jovens usam recursos da internet com maestria. Se não fosse por este meio, acredita que o impacto da cultura das favelas não fosse o mesmo.
 
De acordo com Heloisa, a universidade começa a se abrir para o tema, mas ainda com “luvas de pelica”, para usar sua expressão. A mídia tem dado mais espaço também, vide a invasão de núcleos de favelas nas novelas da Rede Globo Babilônia e I love Paraisópolis, a primeira filmada no Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro, e a segunda num bairro pobre de São Paulo. 
“A chamada classe C tornou-se um nicho de consumo valioso para a mídia. Pena que o atual desastre econômico esteja fragilizando a nova classe média, um fenômeno mais do que bem-vindo”, diz.
 
Perguntada sobre possíveis políticas públicas para a diversidade das periferias, ela diz que o ministro da cultura, Juca Ferreira, tem um xodó bastante evidente por esta cultura. “Se ele tivesse dinheiro, certamente investiria pesado na ampliação dessas redes.”
 
RAÇA E GÊNERO
 
Pouco antes de se debruçar sobre as periferias, a pesquisadora teve um centro de estudos na escola de Comunicação da UFRJ chamado Centro Interdisciplinar de Estudos Culturais, campo de saber que oferecia leque instrumental teórico para o trabalho com as chamadas minorias. 
Nesse Centro, a produção foi intensa, com seminários internacionais e catálogos de registros da participação da mulher na cultura brasileira. 
 
“Coordenei um grande projeto apoiado pela Fundação Ford sobre a questão racial e suas representações, a partir das comemorações, em âmbito nacional, dos 100 anos da Abolição. Escrevi e publiquei bastante sobre o assunto”, conta. 
 
O registro dessas pesquisas está no acervo do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, que Helô coordena na UFRJ, e reúne projetos realizados pelo Centro, como o Encontro de Cinema Negro Brasil, África e Caribe. 
 
O evento ocorreu há alguns meses nos espaços do Cinema Odeon e Centro Cultural da Justiça Federal, homenageando no Brasil, Zózimo Bulbul e, na África, o diretor do Mali, Cheik Oumar Sissoko, com filmes que trazem as peculiaridades da população afro-brasileira e a sua essência multicultural.
 
No site do programa, ainda constam links com aulas inaugurais emocionantes de Heloisa Buarque no começo do ano letivo do ano passado, quando ela conta um pouco da sua carreira.
“Por motivo que a esta altura já esqueci, escolhi e me graduei em Letras Clássicas. Durante o curso li e reli as obras de praxe do universo greco-latino, mergulhando sem máscara nem bala de oxigênio – portanto passível de falta de ar –, num mundo meio mágico e muito magnético que é a literatura e a poesia clássicas (....) Entrei em Letras como professora de literatura brasileira, em 1965, assistente de Afrânio Coutinho, meu orientador no mestrado e doutorado. Minha tese de mestrado foi claramente um rito de passagem entre meus estudos clássicos e o Brasil dos anos 1960. Escolhi como objeto Macunaíma (de Mário de Andrade) – o deus amazônico da mentira – a mais ambígua, híbrida, apaixonada e equilibrista obra da literatura brasileira.” 
 
Para ela, o olhar que se forma sobre a perspectiva de raça e gênero nunca mais abandona a pessoa que trabalhou com isso. “É o meu caso, ainda que esteja lidando hoje com novas questões”, diz ela. “Hoje, ando muito animada com o novo feminismo jovem que está emergindo nas universidades.” 
 
O feminismo atual que a pesquisadora cita vem carregado de ícones da cultura pop – como MC Lidi, da Baixada Fluminense, a cantora americana Beyoncé e a pintora mexicana Frida Kahlo –, fazendo-se presente ainda na literatura e no cinema e tendo como base, ou QG, o Facebook. 
Foi na rede social que apareceu o convite para a marcha do Dia Internacional da Minissaia, que aconteceu na Praia de Copacabana, criado por meninas do bloco de carnaval Mulheres Rodadas. “O tamanho da saia sou eu que escolho! Sem ameaça, sem constrangimento. Tire a sua minissaia do armário e venha ser feliz!”, pregava o convite para o protesto embalado a canções como Dancin’ Days, d’As Frenéticas. 
 
O feminismo que Heloisa tem acompanhado é lúdico e tem tom artístico. Como exemplo está a Marcha das Vadias, que foi inspirado num movimento canadense de 2011. As novas feministas ainda fazem batucada em escolas cariocas em repúdio à misoginia do deputado federal Jair Bolsonaro (PP) e também abarcam causas para além do movimento feminista, levantando bandeiras também em apoio ao movimento gay.