Repórter tenta decifrar nosso maior autor de romance policial
Já haverá sol e paisagem quando, à mesa, Luiz Alfredo Garcia-Roza tomará o seu café. Talvez comentará alguma notícia, repassará à sua esposa, Lívia, alguma viagem que terá de fazer. Não os imagino comentando sobre literatura, sequer a respeito de críticas ou notícias sobre os últimos livros de ambos. Até às 11 o tempo será gasto pelo escritor com a burocracia do lar: pagamento de contas, lista do que deve ser comprado, algum conserto, uma reunião de condomínio.
Findo o primeiro expediente do dia, Luiz Alfredo se despede da mulher - acredito que com um beijo - e segue a pé em direção à próxima Estação de Metrô (Cantagalo? Cardeal Arcoverde? Botafogo? Flamengo?). Possivelmente, antes de ir ao escritório, Luiz Alfredo se entretenha neste caminho em direção ao lugar onde irá trabalhar a tarde toda. Certamente um trecho de conversa ouvido no metrô. Quem sabe uma notícia de jornal lida pelos ombros, um desses tabloides sangue e sexo de 50 centavos. Ou não. Estará na rua, conversará com algum guri. Luiz Alfredo pesca história assim. Certamente no trajeto algo despertará sua curiosidade. Porém, se perceber que não terá nada que lhe renda um enredo, antes de ir ao escritório, um apartamento em algum lugar no Centro do Rio, à beira-mar, Luiz Alfredo almoçará no Vilarino. Gosta de ir lá. Um restaurante localizado na esquina das avenidas Calógeras e Presidente Wilson, famoso por ter sido nele que Vinícius e Tom compuseram Garota de Ipanema, ou algo que o valha. Há uma placa por lá explicando isso.
Finalmente a sós. Assim, Luiz Alfredo poderá escrever. No sagrado recesso do seu escritório, um lugar sem ninguém: nem faxineira, nem empregada. Apenas o escritor e sua solidão com vista para o mar. Esfregará as mãos, ligará o computador que latejará o cursor perguntando: trouxeste a chave?
Em sua casa, Luiz Alfredo não escreve. Já há um escritor lá, sua mulher Lívia. Apesar de casado com uma, o principal autor de romances policiais do Brasil não se dá com escritores. O relato agora começa a penetrar em uma área de sombra e incerteza. Explico: Luiz Alfredo nem sempre foi assim. Quando era apenas um bem-sucedido professor universitário e anônimo fora dos círculos acadêmicos e psicanalíticos, havia entre o seu círculo de amizades alguém que não era apenas um escritor, mas um dos mais importantes nomes da literatura brasileira, Rubem Fonseca.
Não é delírio demais imaginar Luiz Alfredo e Zé Rubem, o cenário pode ser a casa deste ou daquele, bebericando um bom vinho e falando sobre, por que não?, romances policiais. A diferença de idade entre ambos é de 11 anos. Eu devo declarar, de antemão, que é pouca a minha relação com a área de psicanálise. Quase nenhuma, a não ser o fato de ter namorado uma bailarina que estudava Lacan durante um tórrido e intenso período. É delírio, mas eu conjeturei que houve uma espécie de assassinato do pai do romance policial brasileiro (eu deliberadamente exagero), Rubem Fonseca, cometido por Luiz Alfredo.
Iniciando na seara do romance já sexagenário, Luiz Alfredo não queria uma muleta. Queria o risco de andar com os próprios pés. Melhor é pegar as palavras do jeito que elas foram pronunciadas pelo próprio Luiz Alfredo. “Por um certo pudor meu. Podiam pensar que eu estava me utilizando dele (Rubem Fonseca) como suporte. Então, curiosamente, nossa relação quase cessou. Exatamente a partir do momento em que comecei a escrever ficção”.
É sabido que Rubem Fonseca não é alguém dado a holofotes. Que não concede entrevistas, nem dá palestras, a não ser no estrangeiro. Que é recluso. Não há fantasia alguma em imaginar quantas antologias de escritores não queriam estar na mesma situação de amizade de que gozava Luiz Alfredo.
Agora, em nosso relato, a zona de escuridão e incerteza só se adensa. Como é que alguém, como Luiz Alfredo, um daqueles leitores que quando saía um livro de Rubem Fonseca era um dos primeiros a comprá-lo na livraria, curiosamente tenha cessado, meio que magicamente, sua amizade pelo simples fato ter iniciado a escrever?
Antes de descer ainda mais este círculo sem lâmpadas e de poucas pistas, alguém poderá me lembrar do óbvio: por que você não faz estas perguntas ao próprio escritor? Elementar, meu caro Watson, eu as fiz. Todavia, há que se reconhecer, na abordagem inicial cometi meus erros e, por Deus, seria desonesto não revelá-los. Fui ambicioso, confesso. Nem conhecia Luiz Alfredo até lhe enviar uma mensagem eletrônica. Mais do que isto: sequer havia lido qualquer linha de sua obra. Tinha um punhado de elucubrações para este texto e, delírio dos delírios, supôs que Luiz Alfredo embarcaria.
Tinha lido várias entrevistas do escritor. Muitas perguntas repetiam-se. Uma das que faz mais sucesso é: a semelhança entre o trabalho de um detetive e o de um psicanalista. Alterando o tom, mas sem perder a essência, Luiz Alfredo responde sempre que o psicanalista conta com a ajuda do cliente. O investigador, não.
Na redação deste texto, eu teria de agir como um investigador, sem a ajuda de Luiz Alfredo. A resposta demorou alguns dias. Mas veio.
Caro Astier Basílio
Você diz no seu e-mail que essa entrevista/perfil (meu ou do meu personagem) será também um exercício de ficção.
Os três blocos de perguntas e tópicos que você enviou contêm, além das perguntas, uma série de dados pessoais colhidos em entrevistas diversas.
Os dados estão corretos. Você me pede para desdobrar, esmiuçar, as respostas já dadas. Não gostaria de entrar em detalhes sobre fatos da minha vida pessoal, além do que já foi dito por mim nas entrevistas às quais você se refere.
Também não gostaria de misturar uma entrevista jornalística com um exercício ficcional (que é sua intenção declarada). Para fazer um perfil ficcionado, você não precisa do meu auxílio.
Assim, volto a dizer: os dados colhidos por você estão corretos. Eu não teria o que acrescentar a eles.
Um abraço,
Luiz Alfredo
Sugeri outro enfoque. Não queria perdê-lo de todo. Foi neste momento que o Garcia-Roza entrou em ação. Passei, nos e-mails seguintes, a chamá-lo assim e ele a assinar-se desta forma nas mensagens que depois trocamos.
No momento em que escrevo estas linhas devo declarar que já li quatro títulos dos dez que compõem sua bibliografia. Na nova remessa de perguntas, infelizmente, eu não poderia indagar sobre Rubem Fonseca, me ative só a questões relativas às tramas e aos personagens. Havia, porém, tanto o que eu queria saber nos assuntos proibidos. A principal pergunta seria: como Garcia-Roza, em cessando suas relações com Rubem Fonseca, liga para ele, quando do processo de escrita de seu primeiro romance, O silêncio da chuva, e pergunta ao (ex?) amigo como era o ambiente de uma delegacia. Rubem Fonseca, que foi delegado de polícia, disse, simplesmente, que não se lembrava mais.
Que me perdoe Cortázar, mas creio que mais do que um conto, uma entrevista é que tem de ser como uma luta de boxe. Que tem que ser ganha por nocaute. O entrevistador e não o entrevistado tem de, necessariamente, beijar a lona. Adianto, de cara, que não foi o caso aqui, entre Garcia-Roza e eu. Tivemos, digo isso não sem uma ponta de decepção, na melhor das definições, uma modorrenta luta por pontos. Garcia-Roza não se interessou em acertar meu fígado. Como eu não tinha lido toda a sua obra, quase a metade é certo, subiria ao ringue com um flanco descoberto. E, o que temia me sobreveio, fui atingido nele. Logo na primeira questão perguntei algo sobre o fato de Espinosa estar perto da aposentadoria, e se Garcia-Roza não intentava fazer romances recuando no tempo.
“Em Na multidão há um retorno à infância de Espinosa com dados bastante expressivos dessa fase da sua vida. Há até mesmo uma suspeita de participação na morte de uma amiguinha de bairro. Assim, esse recuo no tempo é possível de ser feito outras vezes. No caso de Na multidão acredito mesmo que tenha sido o que conferiu maior intensidade ao personagem, implicando-o nessa perigosa duplicidade investigador/investigado, intérprete/interpretado, inocente/culpado.”
Foram ao todo seis perguntas. Algumas com várias questões, como a tentar instigá-lo. Não posso culpar Garcia-Roza por não ter me dado respostas instigantes. As perguntas também estiveram no nível de suas respostas. É que talvez eu tenha desperdiçado minha inspiração com as perguntas que ele se negou a responder. A única empolgação que eu despertei foi com a pergunta de número quatro. Única que o escritor respondeu com mais de cinco linhas, as demais respostas mantiveram este padrão ou foram mais sucintas.
— Sempre perguntam a você sobre a semelhança entre o ofício do psicanalista e o do detetive. Esta não é a minha pergunta. Gostaria de saber de que maneira o seu conhecimento da psicanálise contribuiu na construção dos personagens, no perfil deles. Penso especificamente no personagem do doutor Nesse e sua conturbada relação com a filha e com o paciente Jonas no romance O perseguido e, mais ainda, em Dona Alzira e Gabriel, mãe e filho de Vento Sudoeste.
— Nunca procurei, deliberadamente, me servir do meu conhecimento da psicanálise para construir personagens. Resultaria inteiramente artificial. A psicanálise não é um procedimento que possa ser deslocado ou transposto da relação clínica para outra situação qualquer, seja ela real ou fictícia. É claro que a psicanálise produziu modificações em mim, modificações essas que por sua vez encontraram expressão nos meus escritos, mas isso nada tem a ver com psicanálise aplicada à literatura. O meu temor é exatamente o de incorrer em psicanalismos. As questões “psicanalíticas” presentes em O perseguido e em Vento Sudoeste, que você apontou muito bem, não são propriamente questões psicanalíticas, mas questões que ultrapassam o âmbito da psicanálise e que dizem respeito à dimensão trágica do indivíduo, marcas humanas que não são removíveis sob pena de removermos do humano o que o torna essencialmente humano.
O dia termina, Luiz Alfredo volta para casa. Quem sabe saltando uma estação de metrô antes, seguindo a pé como gosta de fazer seu personagem Espinosa. Certamente esquecido das perguntas que não quis me responder. Será mesmo que ele se esqueceu de todas? Luiz Alfredo Garcia-Roza antes de largar a cátedra, não com a escritura do primeiro romance, mas após o sucesso deste, havia passado 15 dias entre a vida e a morte, em decorrência de um acidente.
Houve uma pergunta, no rol das proibidas, sobre isto. Mas, qual foi o acidente? Como aconteceu? O que se passou naqueles dias? Houve uma epifania? Terá sido daquelas nas quais aparece um anjo e nos dita qual será nosso rumo, algo como “eu sou a literatura policial, larga tudo o que tens e segue-me”. É algo que muda a vida das pessoas e do qual nem sempre se quer falar.
Luiz Alfredo Garcia-Roza chega em casa. Talvez com alguma ideia de crime escondida sob a manga. Talvez não.
Astier Basílio é jornalista