Ilustração por Janio Santos

Há um par de anos Valter Hugo Mãe foi convidado para um festival literário na Madeira. Acabara de sair de um relacionamento, sentia-se derrotado e sem ânimo, mas foi convencido de que a paisagem e a energia da ilha lhe fariam bem. O efeito foi o contrário. Dar-se com a natureza em sua plenitude e não ter com quem partilhar aquilo que testemunhava, não ter a quem telefonar para falar sobre a beleza que via só fez aumentar seu abismo interior. Aquela primeira viagem à ilha portuguesa serviu-lhe para reforçar a convicção de que o sentido da vida são os outros, e que se não tivermos nem a expectativa do fim da solidão tornamo-nos bichos. Em termos gerais é sobre isso que fala A desumanização, seu mais recente romance — lançado em outubro em Portugal e recém-chegado ao Brasil.

 

“A beleza da lagoa é sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar. Se não houver ninguém, nem a necessidade de encontrar a beleza existe nem a lagoa será bela. A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro”, anota Hugo Mãe nas primeiras páginas do livro. Sexto romance do escritor português nascido na Angola (1971), A desumanização dialoga com O filho de mil homens, seu texto anterior. Ambos abordam a questão da ausência, da paternidade/maternidade e do amor, embora desde perspectivas diferentes. Ali estão muitos desejos e medos do autor, e muitas das perguntas que ele tem feito a si mesmo. “A literatura é exatamente ir à procura do que não sabemos. Escrevo livros para descobrir algo sobre mim que me faça gostar de mim. E por isso tenho de procurar, não é fácil.”

 

Mas ainda que o belo só exista em companhia, Valter Hugo Lemos Henrique de Carvalho (o Mãe foi adotado quando virou escritor) optou pela solidão. “Um homem não é independente ao menos que tenha a coragem de estar sozinho”, diz a epígrafe de A desumanização, que foi escrito durante os meses em que Hugo Mãe passou isolado na Islândia. A frase é do escritor islandês Halldór Laxness, e serve de farol para o português. Valter mora na pequenina aldeia de Vila do Conde, próximo do Porto (Norte de Portugal), e evita, tanto quanto pode, sair dali para não distrair-se do que não é seu ofício — até por telefone é difícil falar com ele. Vive só. Até o momento não cumpriu o sonho de ser pai. Na vila convive diariamente com uma implacável consciência que a todo momento o cobra e o faz questionar-se se o que está fazendo vale para algo. Nem os prêmios (como o José Saramago, em 2007, e o Portugal Telecom, em 2012) e a legião de leitores amenizam essa “acusadora e punitiva” consciência, como ele próprio a qualifica. “Os prêmios e os leitores são algo gratificante, mas ao mesmo tempo responsabilizador, o que faz com que minha angústia só cresça”. E foi sempre assim?, pergunto. “Fui sempre muito cruel comigo, mas agora vai a pior”, confessa. “Vivo muito angustiado com essa ideia de saber se estou melhor, e se mereço alguma coisa, se mereço o que tenho, e até se mereço inclusive esperar melhorar mais ainda.”

 

E embora todas essas questões internas, todos esses conflitos, Valter sente-se em paz. “Hoje sou alguém pacificado”, me disse no dia em que nos conhecemos (quando lhe pedi uma entrevista). Um dia depois almoçamos juntos, tive tempo de fazer-lhe todas as perguntas que quis, e voltamos a falar sobre sua “pacificação”. De ler o que escrevia e das entrevistas que vira, tinha a impressão de que era uma pessoa que envelhecera prematuramente. Mudei de opinião.Já não me parece alguém resignado, cansado da vida, mas sim uma pessoa cuja serenidade advém da sabedoria. “Minha angústia em relação à literatura não me retira essa espécie de calma, essa espécie de paz, que é uma paz complexa mas é muito efetiva a que cheguei”. Um homem pacificado que ao aceitar o que a vida lhe deu (e principalmente o que não lhe deu) atingiu um equilíbrio. “Eu nunca esperei da vida, nunca tive objetivos, nunca imaginei que podia ser escritor. Costumo dizer que a pessoa mais importante que meus pais conheciam na aldeia era o carteiro, nem passava na minha cabeça a hipótese de ser escritor”. Por conta disso, pelo improvável que tornou-se real, Hugo Mãe sente-se agradecido, embora não saiba bem a quem — tem a palavra TAKK, que em islandês significa obrigado, tatuada no corpo. Na infância foi religioso. Hoje vive numa fase de fé em outras metafísicas. Crê, “cada vez mais”, que um livro possa salvá-lo, e eventualmente a mais alguém. “Tenho aprendido a aceitar a utilidade dos livros, porque eles servem a mim para alguma coisa, inegavelmente, como escritor e autor. Sempre foram capazes de me mudar a vida. Por isso, vale a pena arriscar”. E é por isso que continua escrevendo. À procura de algo. E sempre em fuga. “Sempre faço o livro seguinte bem distante do anterior. O meu primeiro livro se chama Silencioso corpo de fuga e já era isso, uma tentativa de fugir de alguma coisa que acho pouca, pequena, e que se calhar sou eu.”

 

(Des)União Brasil Portugal

O nome de Valter Hugo Mãe era completamente desconhecido no Brasil até a Flip (Feira Literária internacional de Paraty) de 2011. O português chegou àquela edição com apenas um livro publicado (o remorso de baltazar serapião). Quando muito era citado como “aquele que escrevia em minúsculas”. Naquela estreia na Flip, Hugo Mãe lançava O filho de mil homens (o primeiro romance em que adota as maiúsculas), mas durante sua intervenção, ao invés de tentar “vender” seu livro, decidiu ler um texto escrito na noite anterior e que contava sua relação, nascida na infância, com o Brasil. Emocionou uma plateia de duas mil pessoas, e chorou com ela. “Isso de chorar no Brasil é assim: eu já tinha chorado em todo lado, eu choro em todo lado em Portugal. E não deu para segurar porque as pessoas estavam a chorar diante de mim. Comoveram-se, e eu percebia isso. E levantaram-se. Eu estava no Brasil pela primeira vez enquanto autor publicado, ninguém me conhecia, era uma coisa nova, e as pessoas terem acreditado em mim daquela forma foi muito forte. É gratidão. No fundo, tudo o que fazemos e todas as coisas que nos propomos só tem isso em causa: estabelecer uma relação de confiança com os outros.” Foi embora aclamado e agora volta sempre.

 

Sua primeira ida ao Brasil foi aos 29 anos, quando ainda começava a escrever os primeiros textos. “Foi a primeira viagem que eu fiz de avião, foi a primeira viagem que paguei com meu dinheiro, a primeira viagem que pude fazer”. Ficou um mês na Ilha da Conceição (RJ), na casa de amigos de conhecidos. Aquele mundo novo foi um choque de realidade. Não havia espaço para seus complexos e sua timidez, era “obrigado” a partilhar a vida com desconhecidos, e depois do susto inicial apaixonou-se por aquilo. “Fui convidado para batizados, casamentos de pessoa que nunca tinha visto”, relembra, e se diverte. “A alegria dos brasileiros tem uma urgência. Foi isso que eu aprendi na Ilha da Conceição durante o mês que eu estive lá nesse lugar pobre, de gente humilde que rala e que ao invés de fazer como o português, que chega à casa e chora, ou faz terapia, o brasileiro dança.” Aquela viagem marcou sua vida. “Continuei inibido, tímido, mas voltei achando que se alguma coisa me pode ajudar essa coisa é o Brasil”.

 

Mas se sua relação com o Brasil é de amor (recíproco), a do Brasil e Portugal é muito menos alegre, admite. “Não passa muita coisa de um país ao outro, passa sobretudo o preconceito. E eu fico um pouco no meio disso tudo, porque há essa percepção de que no Brasil eu dei um pouco certo, que conquistei leitores.” Seu sucesso nas terras da ex-colônia incomoda a muita gente na ex-metrópole. “É uma coisa muita agressiva. Isso é um preconceito puro, o de achar que alguém como eu não pode fazer algo que os outros não fizeram, e depois mais do que isso, mais grave, muita gente acreditar que o Brasil não lhes vai entender, não vai ter referência suficiente, como se não tivesse cultura, como se a cultura fosse de tal maneira distinta que não pudessem perceber como somos, entender um livro nosso.”

 

A ignorância vem de ambos lados, pondera. “O Brasil pode cair no erro de pensar que somos todos novecentistas, que temos uma cultura fechada, que somos todos um bocadinho peças de museu. Um país antigo, onde só se pensam coisas antigas. É um pouco frustrante que os brasileiros venham a Portugal e fiquem à procura do bigode das mulheres, e é meio isso que acontece muitas vezes.” Conhece todas as piadas de português. Não acha graça, mas as considera brincadeira de criança perto do tratamento que muitas vezes testemunha do outro lado. “Uma das coisas que eu combato muito, em que sou muito crítico e severo, tem a ver com a imagem da mulher brasileira aqui. Há uma facilidade em achar que quando se vê uma mulher brasileira ela possa ser prostituta. Isso é de uma violência enorme. Isso é muito feio, e é por isso que ainda vamos andar à porrada muito tempo.”

 

A literatura é um dedo apontado ao espelho

Umas semanas antes dessa conversa que tivemos, Valter Hugo Mãe havia recebido dois duros ataques. Ainda acusava os golpes. Custava-lhe entender os motivos, e contou que embora não rebatera as agressões era difícil superá-las porque cada vez que encontrava um amigo o assunto voltava. Queriam dar apoio, solidarizar-se, mas não o deixavam esquecer o dissabor. “Há gente que nem conheço, com quem nunca estive ou que me viram uma vez na vida, que não sabem nada sobre mim e presumem que sabem, e que tem por mim um ódio irracional, que me tratam como se eu fosse um inimigo público, como se eu tivesse morto gente.” O fato de não frequentar os ambientes literários, de não fazer questão de ter amigos no meio faz com que seja um alvo mais fácil de pedradas — que têm crescido em Portugal na mesma proporção que seu sucesso. “Às vezes as pessoas se irritam por eu ter nas minhas crônicas, em geral, um discurso de elogio. Nelas, ou eu digo mal do governo, porque acho que isso faz parte de todo bom cidadão, ou falo bem de alguém. E muitas vezes são pessoas que não conheço ou nunca vi, não está em causa a amizade. E há gente que me odeia por isso.”

 

No final de A desumanização, após cometer um ato bárbaro, a personagem principal aposta em um perdão futuro. Seu argumento é: “Sabia que me perdoaria. Pensei. Quem não sabe perdoar só sabe coisas pequenas”. Nessa busca por ser alguém melhor, Valter Hugo Mãe agarra-se à literatura. “Quando estou a ponto de prevaricar, lembro que escrevi que quem não sabe perdoar só sabe coisas pequenas.” Cada livro é um dedo a apontar-se a si mesmo, ou ao espelho. “Sobretudo no que diz respeito aos amores e essas coisas com as quais não podemos ser pragmáticos, a literatura dá-me isso, obriga-me a ponderar, a pensar duas vezes, e às vezes dá-me o exemplo. Obriga-me a pensar de que modo é que guardo meus remorsos e fico a remoer minhas mágoas”.

 

Foi abraçado aos livros, e negociando com a vida, que Hugo Mãe domesticou seus demônios e alcançou essa pacificação de que fala, e que se sente. A literatura deu-lhe muito, e lhe ensinou a conviver com as frustrações. Ensinou e exigiu o perdão e, em suas palavras, obriga-o diariamente a tentar ser uma pessoa boa. “As poucas pessoas que me agrediram na vida, gente que fez parte dos meus amigos e deixaram de fazer por agressões violentas à minha vida, posso dizer que não lhes guardo rancor. São pessoas que se algum dia precisarem podem contar comigo, é tão estranho quanto isso”, diz e sorri, talvez porque acaba de lembrar daquilo que escreveu sobre o perdão e as coisas pequenas.