Ilustração por Karina Freitas

 

Paulinha Denisese veste para provocar e capricha no rebolado. Usa um chapéu que mais parece um poodle, que cobre seu cabelo alisado e oxigenado. Tem um cabeção, um rabo perfeito, uma borboleta gigante tatuada na coxa e um umbigão mal tesourado extremamente feio, com uma tripa um pouco pra fora. É a mulher mais brega de Suzano. Frequenta os bares do centro de São Paulo e gosta de frango a passarinho e baconzitos. Tem dois cachorros, Titi e Camila, e uma irmã trambiqueira. Foge para Mongaguá quando precisa fazer algo realmente sério. Nunca leu Dostoiévski, adora Zíbia Gasparetto, compra livros do Shinyashiki e jamais encherá o saco com Clarice Lispector e Amélie Poulain. Curte Zeca Pagodinho. Não conhece “Samba do avião” e não sabe nada de Tom Jobim e bossa nova.

 

Ariela é o contrário de Paulinha. Não depila os pentelhos à maquina zero. Veste apenas uma camisa xadrez e fuma no terraço, mostrando-se nua e cabeludinha para as meninas da rua. Larga calcinhas e bijuterias para marcar território. É uma mentira, uma falsidade ambulante, uma Lolita avançada tecnologicamente. Em seu beijo não há cerveja ou amendoim. Ariela faz sonhar, é mulher para apresentar como namorada. É Maria Rodapé, gosta de beatnik. Tem sorriso de coelho e curte enganar os homens. Enxerga poesia onde somente existe egoísmo, solidão e desespero.

 

Ivete coleciona revistas femininas, não perde um programa da Sílvia Poppovic e é especialista em sexo oral. Mora na rua 3122, nº411, B.C, atende no número de telefone do seu tio Fernando e não trepou ontem de tarde, apenas levou umas porradas reparadoras e transcendentais depois que seu parceiro achou uma camisinha jogada atrás da cama — e ele nunca usa camisinha.

 

Eva é uma debiloide que dá desconto após o programa e fala de amigas em meio ao seu trabalho, mesmo quando está usando a boca para tal — aliás, gosta de conversar enquanto realiza seu ofício com a língua, os lábios, a garganta... Não fuma e tem belos pés, com unhas redondas e cobertas por base. Deveria se sentir honrada pela sutil relação que tem com Charles Bukowski.

 

Claudinha! Ele queria currá-la tal qual lera em Nelson Rodrigues. Uma garota de talentos, queria ser escritora. Abriu as pernas, mas preferia não ver seu nome numa história. Ao final de uma tarde em Paquetá, reclamou que os pés dele não tinham vida.

 

Nelci, aquela de cabelo esquisito e calcanhares sujos, é uma típica representante das garotas da fila de cinema gratuito do Centro Cultural São Paulo. Adora dizer um monte de bobagens e falar sobre uma tal de filosofia de vida superior.

 

Cristina B. era uma paixão de infância, da sétima série B. Claro que ela provocou apenas ilusão e desilusão. Agora, com 34 anos e ainda bela, deve estar casada com um alemão escroto que lhe deu um casal de filhos mongoloides e a leva para passar as férias de julho em Campos do Jordão. Cristina B. foi sucedida pela inesquecível Luciana H.

 

Cris tem dentes grandes, que projetam seus lábios como se engolissem a própria língua. Ela às vezes causa tédio. Já Thaís é arquiteta, lésbica e namora Bebel. Moderninha, gosta de acrílicos. Tem ainda a Regiane, do disk-putas, que beija na boca, não bebe e o chama de “Príncipe de verdade”.

 

Mulher, mulher

Nas colagens acima, estão exemplos das personagens que dão vida a alguns livros de Marcelo Mirisola. Sem mulheres sua escrita não existiria. Sem elas, não conseguiria dar um passo — ou escrever uma linha — sequer. “É impossível fazer qualquer coisa na vida sem a presença feminina, literatura é só uma entre as milhares de outras coisas”, diz o autor num brevíssimo papo que tivemos por e-mail.

 

Paulinha Denise e Ariela são as responsáveis pela existência de Hosana poluída, o mais recente romance, que é publicado este mês pela Editora 34. A história começa num arquipélago na ilha de Sumatra — um dos quatro territórios da Oceania no War, célebre jogo de tabuleiro — e passa por São Paulo, Guarulhos, Rio de Janeiro, Suzano e interior de Minas Gerais. Nas suas primeiras páginas, Marcelo Mirisola, o protagonista, ouve de uma marmiteira que também lê tarô que irá correr o mundo e desfrutar do sexo de muitas mulheres — clarividência que reverbera por toda a obra do escritor.

 

Mas antes de continuar falando sobre as beldades mirisolianas, vale passar por alguns outros pontos de Hosana poluída. A prosa de Mirisola continua precisa até mesmo nas notas de rodapé — ou principalmente nas impagáveis notas de rodapé —, que costumam concentrar toda a verve cafona e sacana do autor, numa ótima mistura de Xico Sá com Chales Bukowski. Uma amostra: “Dedo no cu, no caso dos bitiniques de padaria, dois dedos cruzados — como se materializassem uma estrutura de DNA — que por sua vez denunciaria a falta incorrigível de talento e ânsia de se foder acompanhada de mais uma dose de Domecq” — o ódio é de Buk, a dose é de Xico.

 

A pontaria de Mirisola também continua ótima e mira desde aqueles que analisam seus livros — na visão do personagem, Paula Denise faz comentários mais pertinentes sobre Charque do que pesquisadores, mestres e doutores da Unicamp — e os “intelectuais ticket-refeição da Flip”, passando por velhos torturadores que hoje fazem hidroginástica no SESC “da melhor idade” até atingir o ápice com um “nazista ecológico dissidente do PV e recém-filiado ao PC do B” — e não se preocupem, também há referências críticas em tom parecido a outros partidos de diferentes vertentes ideológicas.

 

Nessa linha de contemporaneidade, vale ainda registar passagens em que o personagem envia mensagens de telefone de Tim para Tim “a custo quase zero”, a possibilidade do Facebook como ferramenta para manter ou resgatar o relacionamento e o sonho de comprar um apartamento em Suzano financiado pela Caixa. São detalhes, às vezes pequenos, que aproximam muito o texto do homem médio brasileiro, aquele que está sempre em busca de seu ouro de tolo. Ainda merecem destaque as referências, como a possibilidade de falar com um tal de Reinaldo Moraes doutor em relacionamentos, e citações a autores consagrados, como neste ótimo trecho: “O diamante é um dos poucos objetos lapidados pela vontade humana capaz de encerrar-se em si mesmo. Os livros de Camus também”.

 

Por fim, em um momento que tanto se discute a autoficção, impossível não registar o quanto escritor, autor, narrador e personagem Marcelo Mirisola são parecidos. Em dado momento, o personagem-narrador chega a pensar se referindo a Paula Denise: “Se ela quisesse mesmo ser minha mulher, teria de aceitar o pacote completo, eu & meus 12 livros publicados”. De um ano pra cá, Ricardo Lísias, por conta de seu romance Divórcio, que esteve no cerne dessa discussão. Considero isso um equívoco. A figura contemporânea ideal para ancorar o debate sobre metaficção e os limites entre escritor, autor, narrador e personagem é Marcelo Mirisola — boa parte de sua obra comprova e nos permite isso. Ele mesmo — o escritor — vai além: “Não só é possível, como é necessário (que haja a confusão). Já disse numa entrevista, e repito: sou o Pedro Álvares Cabral da autoficção aqui no Brasil, e ninguém tasca”.

 

Voltemos às belas

 

Ivete, Eva, Claudinha, Nelci, Cristina B, Luciana H, Cris, Thaís, Bebel e Regiane estão espalhadas por O herói devolvido(2000), O azul do filho morto(2002), Bangalô(2003) e Memórias da sauna finlandesa(2009) e entram neste texto porque seria um desperdício não aproveitarmos uma gama tão boa de personagens femininas. Afinal, Marcelo, personagem preferido de Mirisola, é um grande conquistador. E as moças que conquista possuem personalidade própria, muitas vezes flertam ou mergulham na breguice e cafonice, frequentam bares que fedem a urina e ficam com homens que se banham de loção barata. Não se importam de comer frango a passarinho e às vezes podem ter uma pele de amendoim nos dentes talvez sujos de batom. Não ligam para o bafo de cerveja ou cachaça — podem até sentir tesão nisso. São também moças que caem na lábia de intelectuais e se apaixonam depois de ouvirem algumas frases de efeito ou serem presenteadas com uma bijuteria bem acabada. E podem ser o contrário ou mistura de tudo isso, pois não seguem fórmulas. “Na mesma proporção em que elas me destroem, eu as construo”, conta o escritor. São mulheres de personalidade marcante, jamais idealizadas — a não ser pelos próprios personagens masculinos. E aí, méritos para o Mirisola autor e escritor, que, contudo, garante não sentir atração por nenhuma delas:

 

“— Você sente tesão pelas suas personagens, Mirisola? Com quais você gostaria de ter uma noite (ou uma vida)?

 — Só se eu fosse necrófilo. Tesão nenhum.”

 

Mas eu disse que elas apaixonam e costumam se apaixonar de verdade. Aliás, o amor e a paixão são os grandes temas de Marcelo Mirisola. Muitas vezes são representados em relacionamentos breves, conturbados, acompanhados de traições corriqueiras, porém nunca simples, sempre sofridas. Alguns personagens podem até fingir que não ligam para os chifres ou para as desilusões, mas as frustrações e as dores em algum momento se manifestam, afinal, as relações são sempre intensas, mesmo que dure apenas uma noite — e isso graças às sedutoras Denises, Claudinhas, Regianes e afins.

 

Um conto que representa muito bem isso é “Festinha na masmorra”, de Memórias da sauna finlandesa, no qual o protagonista vai a um clube de sadomasoquismo para conseguir realizar sua grande perversão sexual: fazer papai-mamãe no escuro. É isso! Por mais que se cerquem de grandes extravagâncias, os personagens de Mirisola querem fazer papai-mamãe no escuro, sussurrar um “eu te amo” no ouvido da parceira e levar o café da manhã na cama, ainda que parceira e cama mudem a cada semana. Todos são desesperados por carinho e atenção. Entretanto, o próprio escritor discorda desse ponto de vista: “Eu penso que é tudo idealizado, apesar dos estragos causados pela realidade. Se o amor fosse possível, como você infere, não faria nenhum sentido escrever ficção”.

 

Há um trecho de Hosana poluída que é lapidar quanto à importância das mulheres na obra do escritor: “Inércia é a propriedade segundo a qual um corpo não pode modificar seu estado de movimento ou repouso, ao menos que sobre ele passe a atuar algo ou alguma força. Sem mulher, não há movimento”. Ou seja, a chave para entender Mirisola está em sua própria obra — é assim que os grandes artistas fazem, bastam-se naquilo que criam.