Ilustração por Janio Santos

 

1.

Quando escrevemos, quando criamos, expurgamos o que está em nós, damos forma a sentimentos, organizamos ideias, refletimos sobre o que parecia estar escondido em algum compartimento na periferia do cérebro, dividimos com o papel — real ou virtual — o peso de nossas experiências, um pouco de nossas sombras. Às vezes, algo que começa como um íntimo desabafo se transforma num revigorante e produtivo processo.

 

2.

Você vai voltar pra mim, de Bernardo Kucinski, é um apanhado de histórias transformadas em contos. Praticamente todas elas são de alguma forma inventadas, buscam fazer um retrato da realidade que talvez só seja possível com as nuances permitidas pela ficção. Mais do que relatos pontuais da época da ditadura no Brasil, os textos trazem o clima de medo, perseguição e até mesmo indiferença — a maioria das pessoas não estava nem aí para o que acontecia — instaurada no país ao longo de duas décadas, que estão num passado apenas cronológico. O período está ali, bem representado, seja de maneira trágica, como em “Sobre a natureza do homem” e “Tio André” — talvez o melhor texto de todo o livro —, seja de maneira originalmente saudosista, como em “Recordações do casarão”.

 

Olhados na totalidade, os contos nos dão um grande panorama da vida íntima de muitos brasileiros ao longo da ditadura, de famílias que entravam em conflito porque o filho com verve revolucionária batia de frente com o pai reacionário (“Pais e filhos” e “Os gaúchos”), de “subversivos” que, por viverem em estado de permanente tensão, de medo de serem pegos pela polícia, acabavam encontrando alguma tranquilidade somente quando presos (“A mãe rezadeira”), dos podres da esquerda, tanto em forma de membros delatores (“Dodora”) quanto das artimanhas ilícitas para se levantar dinheiro (“O filósofo e o comissário”). Você vai voltar pra mim trata o assunto com a complexidade e profundidade que ele merece ser tratado.

 

3.

Bernardo Kucinski entrou na USP no começo da década de 1960 para estudar física. Quando um grupo de alunos subversivos foi expulso da FEI, estava dentre aqueles que os receberam na Universidade de São Paulo. De maneira quase que natural para um jovem estudante, pendia para a esquerda na mesma proporção que a direita se extremava. Tentou entrar para uma organização trotskista — estava de olho principalmente nas meninas que dela participavam —, mas foi recusado sob a alegação de que era muito fraco. Isso talvez lhe tenha poupado a vida.

 

Então, colaborava como podia. Levava bilhetes de um grupo para outro, ajudava em ações e até mesmo assaltou alguns mimeógrafos — apesar de não saber para quê foram usados. Percebeu que tinha mais jeito para comunicação e trocou a física pelo jornalismo. Trabalhando na revista Veja, participou da publicação de duas matérias de capa que denunciavam a tortura no Brasil. Fez também um dossiê sobre o assunto, com o irônico objetivo de ajudar o ditador Médici, que bradava ser contra aquela forma de violência, a extinguir a prática cada vez mais disseminada no Brasil. Se não houve censura antes da publicação, a perseguição após a veiculação das matérias foi enorme. Acreditava que colegas da imprensa ficariam ao seu lado, mas estava errado. Com medo de que algo pudesse acontecer, aproveitou que a esposa estava em Londres e se autoexilou na Inglaterra.

 

Kucinski viveu a ditadura de perto. Mais que isso, conheceu gente que mergulhou e foi engolido pelas entranhas dos órgãos de repressão. É com base nas histórias dessas pessoas que escreveu Você vai voltar pra mim.

 

2.

A semelhança entre K. e a obra de Kafka é evidente, a começar pelo nome do protagonista, K, que remete a Joseph K., personagem principal de O processo. K está em busca de sua filha, Ana Rosa, e de seu genro, Wilson, desaparecidos durante a ditadura. Já não tem esperança de encontrá-los vivos, mas quer os corpos, reivindica seu direito de cumprir os ritos e o luto necessários para que a morte possa ser, se não superada, ao menos aceita. Nessa busca, entra numa espiral de mandos, desmandos, informações, contrainformações e absurdos semelhantes aos vividos por Joseph K. Além disso, em todo momento a ditadura soa como a grande força superior que inspira medo e transforma vítimas em culpados — para Kafka, esse elemento estava em casa, como podemos comprovar em sua Carta ao pai.

 

Mas claro que não é só isso. K também luta contra a crueldade do desaparecimento súbito e sem registros — até mesmo durante o holocausto os soldados de Hitler ao menos anotavam os nomes das vítimas. Os capítulos alternam o foco entre K e outros personagens, como uma delatora construída com extrema complexidade, cuja participação é um dos pontos mais altos da obra. Também mostra os problemas da esquerda radical, seu totalitarismo, seus hábitos semelhantes aos praticados por aqueles que combatiam. No âmbito familiar, é uma narrativa sobre um pai que se aproxima e passa a conhecer muito mais sobre a sua filha — não só politicamente, mas também pessoalmente — apenas depois que ela desaparece.

 

3.

Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva desapareceram em 22 de abril de 1974. Militavam pela ALN (Ação Libertadora Nacional) e sumiram quando repressores eliminavam pessoas que pudessem comprometê-los de alguma forma. A bandidagem batia continência.

 

Bernardo Kucisnki estava em Londres e só soube do desaparecimento da irmã e do cunhado quando seu pai foi encontrá-lo. A princípio, acreditavam que o sumiço poderia ser temporário. Porém, com o passar dos dias, das semanas, dos meses, primeiro a angústia e depois o desolamento aumentavam na proporção inversa à esperança de acharem Ana e Wilson vivos. Investiram dinheiro, contataram gente em diversos lugares do mundo, vasculharam todas as pistas que surgiram, mas elas sempre vinham acompanhadas de algo estranho, como uma força maior que misteriosamente as alteravam e impediam que se aproximassem de alguma verdade. O espectro ditatorial parecia atuar em todas as instâncias.

 

A violência contra a família e contra Ana não se encerrou no desaparecimento em si. Depois disso, ela passou a ser tratada por muitos como uma mera comunista, como alguém que mereceu sofrer o que sofreu. Nem mesmo na USP, onde dava aulas, recebeu um tratamento respeitoso. Após uma decisão tomada por seus colegas, foi destituída de seu cargo por abandono de emprego, como se não ir ao trabalho fosse uma opção sua, não uma consequência de seu assassinato, de um crime político. O caso ainda é uma chaga na história da universidade.

 

No ótimo K., Kucinski romanceia a história da busca de seu pai por sua irmã e se aprofunda nessas questões que envolveram o pós-morte de Ana.

 

2.

A abordagem que Kucinski utilizou em K., a tragédia vista sob uma perspectiva próxima, mas não grudada, a um pai que perde sua filha, o transforma em um livro esteticamente mais interessante do que Você vai voltar pra mim. Contudo, ambos são fundamentais — aliás, qualquer obra bem escrita sobre a ditadura é fundamental. Retratam um período que ainda não se esgotou, que vive nos algozes impunes que continuam por aí, nos mais variados tipos de vítimas e, o que é mais preocupante, em seus entusiastas.

 

Mas a relevância vai além. Todas as atrocidades representadas nas obras de alguma maneira eram justificadas por conta da vítima ser “subversiva”, algo bastante semelhante com o que temos hoje, quando alguém pode ser espancado por dez policiais em uma manifestação, afinal, se estava lá, é “baderneiro”, ou preso ao poste com um cadeado de bicicleta, já que é “bandido” mesmo. O ser humano continua sendo descartável no Brasil, só mudaram os adjetivos.

 

Um dos melhores trechos de K. vai ao cerne da questão, flertando com a humanização dos animais e animalização dos humanos: “Mandou comprar essa ração de trinta paus o quilo, mais cara que filé mignon; o pior foi ontem, quanto eu falei em sacrificar a cadela, levei o maior esporro, me chamou de desumano, de covarde, que quem maltrata cachorro é covarde; quase falei pra ele: e quem mata esses estudantes coitados, que têm pai e mãe, que já estão presos, e ainda esquarteja, some com os pedaços, não deixa nada, é o quê?” — haviam acabado de matar os donos da cadela, agora deveriam cuidar bem do bicho.

 

3.

Kucinski acredita que no Brasil a ditadura não tem o tratamento que merece. Crê que o brasileiro, de uma maneira geral, não se envergonha de um dos períodos mais asquerosos de sua história, que encara as perseguições, torturas, mortes e sumiços como algo necessário para aquele momento. Evoca países que protagonizaram tragédias semelhantes, ainda que de proporções distintas, e tentam se retratar com o passado, como a Alemanha e a necessidade de reafirmar constante que o holocausto foi um erro gigantesco, como outros países da América do Sul, que julgaram, condenaram e prenderam ditadores e seus capangas fardados. Aqui não. Apesar da Comissão da Verdade, o esforço é pequeno, como se não quisessem incomodar os velhinhos que ainda exercem influência e, mais do que isso, são admirados por membros das Forças Armadas e de parte representativa — e poderosa, principalmente — da população.

 

16.

Mas essa é a visão macro, a visão do país, do povo. Há ainda a visão micro, o eu, a tragédia particular. Essas Kucinski começa a de alguma forma superar. Depois de ser compulsoriamente aposentado pela USP, onde era professor, e de se desiludir com o jornalismo que pende cada vez mais para o lado de quem detém o poder, resolveu escrever ficção — garante que ela permite uma maior reflexão sobre a condição humana.

 

Enquanto conversamos sobre sua relação com o período ditatorial, sobre sua irmã, seus olhos permaneceram vermelhos como o uniforme da seleção polonesa — representante do país onde seu pai nasceu. Às vezes os esfregava com as mãos, com força, apertava-nos, mas nenhuma lágrima se desprendeu do seu marejado globo ocular. Sua aparência, seu sentimento, só mudou quando falamos de literatura. Sorri para dizer que descobriu a maravilha que é inventar ou recriar histórias, mas lamenta ter começado muito tarde — ele é de 1937. Arrisca-se em diversos gêneros, experimenta-se com o estilo de outros escritores, passeia por temas, descobre-se como autor. “Rompi com a razão racional, fui para a razão humana”.

 

Por que optou por começar escrevendo sobre a ditadura? Porque era o que ainda estava — está — latente dentro de si. Enxerga Você vai voltar pra mimcomo um livro bastante forte, mas escrito com a cabeça, enquanto diz que K.foi feito com suas entranhas. Dessa forma, com a cabeça, com as entranhas, Kucisnki encontrou nas palavras uma forma para cuidar de seu passado.