Vemos com frequência as notícias sobre o fechamento de livrarias e outros discursos semelhantes que servem para propagar uma ideia de crise com viés de calamidade, narrativas focadas em formas tradicionais de conduzir a propagação da literatura – possível fusão das grandes marcas (Cultura e Saraiva), reposicionamento de marcas clássicas (A livraria carioca Leonardo da Vinci), por exemplo.
Nesse contexto, surgiram várias iniciativas fora do mercado editorial hegemônico. É o caso da Desvairada – feira de livros de poesia de São Paulo. O evento, batizado em homenagem à cidade (Pauliceia desvairada), ocorre sexta e sábado (24 e 25), no Aldeia 445 (Rua Lisboa, 445 - Pinheiros), na capital paulista. Gratuita, a programação completa está neste link.
A feira é organizada pelos poetas Marília Garcia, Fabiano Calixto, Leonardo Gandolfi e Tiago Marchesano. Ao procurar trazer poetas e discussões com menos visibilidade, mas dentro de um formato já conhecido – o de feira –, a Desvairada une “novo” e tradicional em uma proposta atraente. É o caso da leitura de poemas eróticos em libras e do concurso de video-poesia. Talvez não sejam novidades essas ações, mas certamente é uma oferta que promove o encontro de leitores, cria um ambiente propício à troca de experiências e permite o contato com formas não-hegemônicas de ler poesia.
O evento reúne 23 editoras, desde aquelas com catálogos maiores, como a 7 Letras, até as menores, como a Jabuticaba (três livros). Os horários de funcionamento serão: na sexta (24), das 17h às 22h; e no sábado (25), das 11h às 21h.
Iniciativas como a Desvairada mostram que momentos de crise são bem-vindos por estimular a busca de formas alternativas de difusão. Mostram que o meio literário está ativo, produtivo e que deseja físico (e não apenas virtual) contato com o leitor. Se há crise, há dúvida; e, historicamente, isso é o que faz as pessoas e as ideias se movimentarem.
Abaixo, uma entrevista com os quatro organizadores da feira. Eles distribuíram as perguntas entre si:
Houve alguma “inspiração” - no sentido de entrar em contato com algo e ter um insight – que deu a ideia de realizar a Desvairada?
Leonardo Gandolfi: Marília e eu editamos a Luna Parque, e Calixto, a Corsário-Satã. Somos amigos e um dia participamos de uma feira de livros no Sesc Santo Amaro. Uma feira de cartoneras, a Luna Parque entra graças ao convite da Corsário-Satã. Depois da feira, saímos de lá com a ideia de fazermos uma feira independente voltada para poesia, convidando algumas editoras (quase sempre caseiras) com as quais temos certa proximidade e afinidade no tamanho. Ficamos matutando a ideia até que uma amiga, a Marcela Vieira, nos apresenta o Tiago Marchesano, que nos convida para conhecer o Aldeia. Ele quer fazer algo que tenha a ver com poesia e afins. Resolvemos então tocar a feira pequena, uma ação coletiva e bancada pelas editoras convidadas. Reunidas as editoras, elas mesmas montam a programação, indicando autores. A “inspiração” é a tentativa de reunir diferentes pessoas que editam livros e pensar – num contexto específico e local – algumas possibilidades de distribuição e de debate da poesia.
Qual a origem do nome “Desvairada”? O nome se relaciona de alguma forma com o entendimento que vocês têm do que é a leitura de poesia?
Marília Garcia: “Desvairada” se refere à cidade, à Pauliceia desvairada do Mario de Andrade. Dos quatro organizadores da feira, três são de fora de São Paulo e, talvez por isso, queríamos dar um nome que remetesse ao topônimo de onde será a feira. Por outro lado, queríamos um nome que deixasse claro que se trata de uma feira de publicações de poesia. Há várias feiras no calendário de São Paulo, algumas mais voltadas para as artes gráficas, outras com literatura também. A gente queria um nome que claramente remetesse à poesia e fosse mais específico.
Qual o público esperado?
Tiago Marchesano: Prever o número de participantes é um pouco difícil, já que estamos em uma cidade cheia de ofertas culturais e intempéries, como trânsito e tempestades, que nos acometem nessa época do ano. A feira terá duração de dois dias e estamos divulgando e fazendo esforços há mais de dois meses na internet, em redes sociais, jornais, círculos pessoais e outros meios.
A ideia da feira é que ela contemple, antes de mais nada, editoras e poetas, já que são eles que produzem e fazem chegar ao público a produção poética atual, especificamente nesse caso, da região Sudeste. É extremamente importante que exista esse tipo de encontro, já que as feiras de publicações independentes veem pululando em São Paulo, mas nenhuma com foco específico em poesia.
Sobre o público, além do habité consumidor e fruidor de poesia, queremos demais que o público ligado à cultura, mas, muitas vezes mais próximo da literatura em prosa se aproxime do universo da poesia sem achá-lo um bicho obscuro. O constante crescimento de editoras independentes e trabalhos incríveis dessa geração precisa chegar ao público que não está acostumado com livros de poemas.
A localização do Aldeia (Rua Lisboa, 445), ao lado da Praça Benedito Calixto, pode ser um trunfo na possibilidade em pescar um público bem diverso que vem aos sábados caminhar pela feira de antiguidades e outras atrações que por ela orbitam, como feiras de comida, restaurantes, bazares e bares.
Além disso, buscamos a partir da programação gerar um universo mais inclusivo em contato com a poesia, já que haverá leitura de poemas eróticos com interpretação em Libras, o que convida o público surdo a participar de um evento que, muitas vezes, não consegue dialogar com sua cultura. Também promoveremos uma oficina para crianças, buscando, assim, inserir a linguagem do poema, desde cedo, no imaginário e na formação de nossos futuros leitores.
Interessante a ideia da leitura de poesia erótica com libras. Na opinião de vocês, quais as possibilidades de leitura que isso abre (além das leituras tradicionais já feitas pelo leitor, pela crítica etc)?
Tiago Marchesano: A sugestão da leitura de poemas eróticos com Libras partiu de uma amiga nossa, a Marcela Vieira, que junto com a Ana Cristina Joaquim teve a ideia de misturar um de seus temas de pesquisa ao gestual da Libras. Para nós fez todo o sentido desde o começo. Então, junto com a OSCIP Mais Diferenças, que trabalha com Educação e Cultura Inclusivas, começamos as traduções e ensaios, e acreditamos que o resultado será extremamente potente, tanto para os surdos, quanto para os ouvintes. A relação da corporalidade presente nos poemas e da Libras é um resultado inusitado e divertidíssimo. E não teremos apenas intérpretes ouvintes interpretando as leituras, mas teremos surdos lendo os poemas, também.
Além disso, é de extrema importância promover encontros como esses, que fazem com que o surdo se familiarize com a palavra escrita, já que seu registro principal vem da palavras e sinais gestuais, e que, também, os ouvintes entrem em contato com essa língua, que é a segunda oficial do país, mas que poucos têm em seu arsenal linguístico.
Esperamos, assim, poder abrir precedentes para que essa questão seja levada a cabos por diversas iniciativas, não apenas no campo da literatura, mas da cultura em geral.
Vocês abrem com uma audição poética do trabalho de Stela do Patrocínio, propõem uma leitura de poemas eróticos em libras e promovem um concurso de vídeo-poemas - o que parece indicar preocupação com diversidade de temas e estéticas. Especificamente sobre a escolha dos autores que estarão na Desvairada lendo, discutindo e lançando livros, não vi diversidade no perfil dessas autoras e autores (apesar de começarem com leitura de Stela do Patrocínio). Uma diversidade que toca em questões políticas sensíveis no nosso país. O que é, para vocês, “ampliar a difusão e modos de ler poesia”?
Fabiano Calixto: Bem, quanto à diversidade da programação com relação aos autores que lerão ou lançarão, se você não viu diversidade fica difícil saber o que você pensa por diversidade. Vamos lá. Uma lista comentada bem didática da programação:
Luiza Leite, poeta carioca que nasceu em meados dos anos 70 e estreou em 2002.
Reuben da Rocha, poeta, artista visual & performer maranhense nascido em 1984, possuidor de um dos projetos poéticos mais instigantes e poderosos da contemporaneidade.
Bruna Beber, poeta carioca, também nascida em 1984 e uma das grandes poetas do nosso tempo.
Contador Borges, poeta, tradutor e ensaísta paulista nascido em 1954, tradutor, dentre outros de Sade e Char.
Stela do Patrocínio (1941-1997), poeta da fala, da letra elétrica que vem sendo lida cada vez mais e melhor tanto pelos pesquisadores quanto pelos poetas.
Julia de Carvalho Hansen, poeta paulista nascida em 1984, também editora, que lançou alguns dos melhores livros de poesia no Brasil recente.
Augusto Massi, poeta, crítico e professor universitário, nasceu em São Paulo em 1959. Foi editor de duas importantes coleções de poesia brasileira recente, a Claro Enigma e a Ás de Colete (ao lado de Carlito Azevedo).
Dalila Teles Veras, poeta portuguesa nascida em 1946 (radicada no Brasil desde 1957) e editora de uma das mais importantes editoras do ABC paulista, a Alpharrabio.
Diego Vinhas, poeta cearense nascido em 1980. Publicou dois livros importantes de poesia e foi editor da revista Gazua.
Paloma Vidal, poeta, prosadora, crítica e professora universitária argentina nascida em 1975 e radicada no Brasil desde 1977. Uma das editoras da revista Grumo.
Leonardo Marona, poeta, jornalista, tradutor e agitador cultural, nasceu em Porto Alegre em 1982. Traduziu, entre outros, Shkspr e Eugene O’Neill.
Fabrício Corsaletti, poeta e prosador, nascido em Santo Anastácio em 1978. Tem uma das obras mais consistentes da atual poesia brasileira.
Ana Kiffer, professora universitária, crítica e tradutora. Verteu para o português Antonin Artaud.
Alberto Martins, poeta, prosador, artista visual e editor, nascido em Santos em 1958. Editor na prestigiosa Editora 34 e escritor de algumas das obras mais respeitadas da literatura brasileira contemporânea.
Natália Agra, poeta alagoana nascida em 1987. Publica seu primeiro livro neste ano.
Marcela Vieira, tradutora nascida em 1983 em Poços de Caldas. Compõe o núcleo editorial da revista Fevereiro. Tradutora de Sarraute, cujo lançamento será na feira.
Bruno Azevedo, escritor, editor e agitador cultural maranhense nascido em 1979. Editor da resistente e importante editora Pitomba. Também editor com Celso Borges e Reuben da Rocha, da inventiva revista Pitomba.
Maurício Salles Vasconcelos, escritor, tradutor e professor universitário. Traduziu o livro My life, de Lyn Hejinian.
Marcelo Reis de Mello, nasceu em Curitiba, em 1984, poeta, professor, tradutor e editor da Cozinha Experimental.
Além desses autores, temos o pessoal das mesas e outras atividades.
Nas mesas, temos debate sobre edição independente de poesia (que ecoa na forma independente de encarar a vida – a vida, lembre-se, fato político maciço). Nesta mesa, teremos João Varela, da Lote 42, com suas interessantes ideias de edição e circulação, e também Rodrigo Lobo Damasceno, da treme~terra, que vem criando alguns dos objetos editoriais mais fodas da cena, construindo uma ideia bastante forte e crítica, através da criação, de material, materialidades e suporte.
Temos a mesa de poesia e política (você acha que as “questões políticas sensíveis em nosso país” não serão tocadas aqui?) com os poetas e críticos Paulo Ferraz, Rafael Zacca e Mário Camara – de gerações e até nacionalidades diferentes.
Além das mesas, que não são muitas devido ao caráter independente-independente-mesmo da feira, ou seja, estamos fazendo isso tudo no muque, com o único apoio de nós mesmos, sem grana alguma, e isso dificulta (e muito, pois como você, com sua sensível visão política, deve saber que vivemos num mundo dinheirólatra) qualquer possibilidade mais ampla na estratégia/ logística. Bem, pois então, além das mesas, temos uma seleção de poemas eróticos em libras – escolhidos por duas mulheres extremamente conhecedoras do assunto poesia, Ana Cristina Joaquim e Marcela Vieira. Além de uma oficina de poesia infantil, brincante, explorando as várias possibilidades de curtição de poesia. Exibição de vídeo-poemas cujos proponentes são em sua grande maioria autores jovens e desconhecidos. E também uma oficina cartonera (um dos projetos culturais que mais admiramos hoje em dia), que tratará de edição de livros artesanais e construção de catálogo, ampliando ainda mais as possibilidades de publicação e difusão de poesia.
Como você pode notar, as opções estéticas dos autores são múltiplas, os projetos miram alvos e fins diferentes. Homens e mulheres, de várias gerações, estilos, opções, dicções. Então, como assim não há diversidade no perfil dos autores e autoras?
Como entendem a ideia de que “poesia não vende”?
Fabiano Calixto: Entendemos como manipulação, sabotagem e projeto puramente mercadológico das grandes editoras nacionais que já faz algum tempo só apostam em mercadoria. Décio Pignatari afirmava que a poesia é a arte da antimercadoria, ou seja, não chega ao bojo vendável da prosa, da autoajuda, ou de qualquer porcaria de best seller que apareça, por que sua preocupação é justamente outra, avessa a aparências e groselhas. Por outro lado, as grandes e respeitáveis editoras mundo afora têm muita poesia em seu catálogo, dos clássicos aos jovens – e a isso damos o nome de projeto cultural. O discurso dos publishers nacionais (publisher, a gourmetização dos editores-jeca) de que poesia não vende é, portanto, amor irrefreável ao dinheiro, ódio à cultura e covardia.
Em recente artigo no Estadão, o poeta e pesquisador Marcos Siscar levanta pontos interessantes a respeito da difusão da poesia no Brasil. Entre outras coisas, ele lembra que a internet dificulta qualquer cálculo sobre a quantidade de leitores no país; que o mercado editorial já teve picos significativos de venda (Leminski, Ana C e Waly Salomão); e que editoras grandes (notadamente a Cia das Letras) ampliam seu catálogo de poesia e divulgam essas obras com certo glamour. Como vocês, poetas e gestores de editoras menores, enxergam essas ideias?
Leonardo Gandolfi: Esse texto do Siscar é realmente muito bom, porque não simplifica a discussão. O modo de funcionamento de uma editora grande (ainda mais quando há uma concentração de mercado, como é o caso do Brasil) funciona em escala – comparada com as editoras da feira – inimaginável, e com outros interesses. O projeto cultural que há nas editoras grandes leva em conta uma ideia de mercado que, em determinado contexto, pode ser considerado padronizado, pensando no produto que é o poema ou o livro de poesia. Levando isso em conta, há coisas que essas editoras podem fazer. Você mesmo deu exemplos de feitos realizados. Tomara que continuem ampliando catálogos.
Qual o papel dos lançamentos de editoras pequenas - como a Aeroplano ou a 7 Letras (Sette Letras) - na formação de vocês? A 7 Letras, por exemplo, continua firme ainda hoje. Mas é possível relacionar a atuação de vocês hoje com a deles em décadas passadas (ainda que o contexto socioeconômico seja diferente)? Se sim, como?
Marília Garcia: O papel dessas editoras na minha formação foi crucial, não só como leitora, mas também como editora. Trabalhei durante 10 anos na 7letras e a Luna Parque é “filha” direta da 7letras. O mercado editorial é muito concentrado e homogêneo e as editoras maiores têm de funcionar de acordo com esta lógica já estabelecida. Elas devem dar descontos enormes para as livrarias, devem consignar quantidades grandes de exemplares (em vez de vender), ter o acerto só em 60, 90 dias depois da venda, pagar para expor os livros nas prateleiras. É uma lógica que exige que os livros tenham uma cara determinada para poderem se adequar a isso tudo. Uma editora independente ou de pequeno porte tem dificuldades com esse mercado padrão e muitas vezes precisa achar alternativas para chegar aos leitores (por exemplo, por meio de leituras, feiras, eventos paralelos, livros com outros formatos, menos padronizados pois as livrarias não acolhem qualquer coisa). Assim, sempre me interessou no trabalho dessas editoras que você cita os projetos paralelos, como os que a 7letras faz, de livros de formatos pequenos, com tiragens também menores (e aparentemente mais paralelos, mas às vezes cruciais na escrita de alguns autores).
Chegando à segunda parte da pergunta, acho que o momento é diferente mesmo e pode ser difícil comparar a atuação dessas editoras, em uma época em que era bem mais complicado o acesso às tecnologias digitais, com o cenário de hoje, em que é mais propício e viável fazer tudo em pequena escala e acessar o público através das comunidades digitais. Mas acho que as questões são parecidas, sim, e nós nos formamos lendo aqueles livros e vislumbrando, em projetos como o da 7letras, a possibilidade de haver uma maior diversidade nessas brechas do mercado editorial (o que eu acredito que está acontecendo nesse momento).