A produção poética de Roberto Piva (1937-2010) é conhecida pelo tom subversivo. Do caos, ele procurou extrair o ouro de seus escritos, resultando, entre outras coisas, em painéis oníricos, naturais, mitológicos que questionavam as lógicas normatizantes da sociedade e do indivíduo. A poesia como uma forma de xamanismo.
Ao longo de sua trajetória poética, iniciada nos anos 1960, Piva publicou poemas em revistas, jornais, antologias. Uma produção discreta, desconhecida de boa parte dos seus leitores, que será resgatada pela Azougue Editorial para inaugurar a série “Antologia Postal”. Abaixo, um dos poemas que entraram na reunião:
Bar Jeca
qualquer coisa da Virgílio na alma daquele
garoto
o formose puer, nimium ne crede colori
mascando minha macauva incrementada
sonhos sonhados de sanhaços
chicle de bola de uma religião
qualquer
ruas como rédeas nas minhas luvas
dirijo tudo para o atleta-feiticeiro
deus-porco com tetas de fora
além do trem & do varal
o formose puer, nimium ne crede colori
qualquer coisa de Virgílio na alma daquele
garoto
(de 1979. Publicado na revista Imã, 1986)
Paralelamente, o acervo pessoal de Piva – repleto de obras raras e um verdadeiro mapa de suas influências literárias - está sob risco de se perder. Uma campanha foi feita no Catarse para angariar fundos, financiar a conservação e criar condições para que o público tenha acesso aos livros.
Sobre esses assuntos, conversamos com o escritor Sérgio Cohn, editor da Azougue Editorial e pesquisador da obra de Piva.
-Interessante essa edição de poemas de Piva vir em um momento em que o autor parece esquecido. Um sintoma desse esquecimento talvez seja a precariedade em que se encontra o acervo dele. Ao mesmo tempo, você já comentou (no Facebook) que Piva vem sendo redescoberto por jovens e que tem mais leitores hoje do que em vida. Gostaria que você, como pesquisador da obra de Piva, começasse opinando sobre essa dualidade (um negligenciado que tem mais leitores hoje).
Sérgio Cohn: Existem duas questões aqui. Uma é o Roberto Piva, poeta. Este está vivendo possivelmente o seu momento de maior divulgação e reconhecimento, especialmente entre os leitores mais jovens. Há uma multiplicação de pesquisas, teses, estudos sobre a sua poesia, e ele é cada vez mais lembrando como um dos mais importantes poetas brasileiros da segunda metade do século XX. Portanto, não creio que ele esteja num momento de esquecimento, pelo contrário. A outra é questão do acervo. Este é um problema estrutural no Brasil. São poucas as instituições capazes de preservar e disponibilizar acervos no Brasil. O que fica ainda mais gritante no caso de literatura, cujos acervos costumam não ter ou ter pouco valor de mercado. As instituições acadêmicas estão no seu limite para receber acervos, e a Casa de Ruy Barbosa não pode sozinha conter a multiplicidade de acervos da literatura brasileira. Portanto, o problema não é do acervo do Roberto Piva, mas de dezenas ou centenas de autores de grande importância. Só a constituição de políticas estruturantes para a memória cultural no Brasil pode alterar este cenário desolador. Mas, enquanto não ocorrem estas políticas, uma iniciativa como a da Biblioteca do Piva é muito salutar. Até para trazer a público a questão.
-Pelo que você acompanha, como se dá esse contato dos jovens com a poesia dele? Internet, bibliotecas, livrarias, sebos etc?
Sérgio Cohn: Foi muito importante a edição das obras completas do Roberto Piva por uma grande editora, a Globo. Os poemas circularam muito mais. Creio que isso fezdiferença. Acho que esse foi o fator principal - uma edição consistente, com tiragem alta para poesia, e que teve uma excelente repercussão em crítica e público.
-Essa reunião de textos surge agora como consequência da sua pesquisa de 20 anos sobre o autor ou foi algo pensado para dialogar com esses novos leitores de Piva?
Sérgio Cohn: O livro que estamos publicando não é uma antologia de apresentação da poesia do Roberto Piva, mas de textos dispersos que nunca foram publicados em livro. Portanto, não é um livro de divulgação, exatamente, mas para apreciadores e pesquisadores da poesia do Piva. Mas, é claro, pela força e beleza dos poemas reunidos, é um livro que deve encantar também novos leitores...
-Existe algum tipo de unidade entre os textos (além do fato de serem do mesmo autor)? Gostaria que você falasse dos critérios de seleção dos escritos.
Sérgio Cohn: São textos publicados num grande espaço de tempo - 40 anos, entre 1961 e os anos 2000. Por isso, uma das grandes contribuições da antologia é mostrar as mudanças que ocorreram na poesia do Roberto Piva com o tempo. O critério de seleção foi reunir poemas que o autor publicou em vida, em plaquetes, livros e revistas. Desta forma, podemos pressupor que são textos que o Piva considerou prontos e válidos de publicação.
-O que se vê nos poemas que vocês escolheram para entrar tem mais a ver com o Piva subversivo que já se conhece ou há elementos diferentes que ele veiculou nessa produção pouco conhecida?
Sérgio Cohn: Piva sempre foi um subversivo. Mas creio que a antologia pode também ajudar a mudar algumas imagens consolidadas sobre ele. Uma das facetas menos divulgadas do Roberto Piva é a sua corajosa luta pelas liberdades democráticas durante a ditadura. Piva acabou conhecido como um poeta subversivo nos costumes e conservador na política, mas a antologia que fizemos traz, por exemplo, poemas que tratam diretamente da luta pela democracia e contra a ditadura, e mostram que esta imagem conservadora politicamente do Piva é apenas uma faceta da sua trajetória. Como figura inquieta, Piva teve diferentes posições políticas durante a sua vida. E há também, é claro, os poemas iniciais, ainda muito líricos, e outras facetas menos conhecidas do poeta.
-O livro já tem previsão de lançamento? No site, vocês apenas falam que será no segundo semestre. Haverá algum prefácio/posfácio/apresentação aos poemas?
Sérgio Cohn: O livro está em finalização. É um projeto artesanal, e portanto o tempo é menos exato do que de um livro industrializado, onde já sabemos que demora em torno de três semanas para ser impresso e finalizado em uma gráfica. Mas creio que ainda neste mês teremos ele em mãos.
-Esse projeto de resgate se estenderá a outros títulos da coleção Antologia Postal? Além de publicar autores não tão presentes no mainstream, haverá pesquisa de poemas pouco conhecidos ou esquecidos desses poetas?
Sérgio Cohn: Sim, estamos trabalhando com esse projeto de resgaste nos outros livros. Sempre buscando textos que não foram publicados em livros dos autores, vendo a relevância deles para a compreensão da obra. Mas o resgate não se resume a isso: estamos publicando autores que nunca tiveram antologias de suas obras editadas, e outros que estão há muito tempo fora de catálogo. Será uma contribuição para o leitor interessado em poesia contemporânea. Posso dizer que será uma coleção fundamental, até por trazer longas entrevistas com os autores, exclusivas, para contextualizar e refletir sobre as suas obras.
-Sobre o modelo de negócio da coleção Antologia Postal (você paga mensalmente para receber livros de poesia durante 1 ano), como surgiu a ideia? Vocês se basearam em alguma editora que já usou esse mesmo formato?
Sérgio Cohn: O Círculo do Livro já fazia isso décadas atrás. Mas a grande questão está na dificuldade de comercialização dos livros de poesia nas livrarias, e portanto a necessidade de se encontrar outras formas de viabilizar e circular esses conteúdos. E, ao criar o modelo mensal por assinatura, podemos contribuir na divulgação de diferentes autores. As pessoas assinam por conhecer alguns poetas, e acabam se surpreendendo com outros autores maravilhosos que estavam fora do seu radar.