Um dos maiores contistas do país, Antonio Carlos Viana elege os cinco contos da literatura brasileira que mais o influenciaram ou que considera incontornáveis. A lista reforça a necessidade de se visitar (e revisitar) os clássicos para criação de repertório literário, mas também aponta para uma conhecida pedagogia: é possível se tocar sobre as coisas do mundo e do passado a partir da literatura. O escritor é, antes de tudo, um leitor.
Nesta sexta (5), Viana conversa com o editor Schneider Carpeggiani sobre criação literária na III Feira do Livro do Vale do São Francisco, em Petrolina.
Confira a lista:
Os cavalinhos de Platiplanto (J.J. Veiga) - “O conto me pegou de primeira por misturar a realidade e o maravilhoso, criando uma atmosfera poética única, a partir do pensamento infantil. Foi esse conto que me despertou em mim a vontade de escrever e comecei a escarafunchar a minha infância, que até então eu não sabia ser tão rica”.
TRECHO: Enquanto mamãe fazia os curativos eu só pensava no cavalinho que eu ia ganhar. Todos os dias quando acordava, a primeira coisa que eu fazia era olhar se o pé estava desinchado. Seria uma maçada se vovô chegasse com o cavalinho e eu ainda não pudesse montar. Mamãe dizia que eu não precisava ficar impaciente, a folia ainda estava longe, assim eu podia até atrasar a cura, mas eu queria tudo depressa. Mas quando a gente é menino parece que as coisas nunca saem como a gente quer. Por isso é que eu acho que a gente nunca devia querer as coisas de frente por mais que quisesse, e fazer de conta que só queria mais ou menos. Foi de tanto querer o cavalinho, e querer com força, que eu nunca cheguei a tê-lo.
A terceira margem do rio (Guimarães Rosa) - “A cada releitura que faço, esse conto me revela nuances antes não percebidas. É um conto fundamental da literatura brasileira. Quando era professor de literatura, nenhum aluno podia passar por mim sem conhecê-lo. É uma boa porta para dar entrada no mundo rosiano”.
TRECHO: Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
O crime do professor de matemática (Clarice Lispector) - “Clarice Lispector tem muitos contos excelentes, mas esse parece mais uma oração. Depois de lê-lo, jamais abandonaremos um cão”.
TRECHO: "Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão", pensou o homem. "Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível". Sentado na chapada, sua cabeça matemática estava fria e inteligente.
Só agora ele parecia compreender, em toda sua gélida plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições.
Vestida de preto (Mario de Andrade) - “Outro conto que despertou em mim ecos da infância. A leveza da linguagem de Mário de Andrade me cativou desde a primeira leitura de seus contos. Outro contista fundamental da nossa literatura”.
TRECHO: Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade. Minha impressão é que tenho amado sempre. Depois do amor grande por mim que brotou aos três anos e durou até os cinco mais ou menos, logo o meu amor se dirigiu para uma espécie de prima longínqua que freqüentava a nossa casa. Como se vê, jamais sofri do complexo de Édipo, graças a Deus. Toda a minha vida, mamãe e eu fomos muito bons amigos, sem nada de amores perigosos.
Venha ver o pôr do sol (Lygia Fagundes Telles) - “Lygia Fagundes é outra que tem muitos contos excelentes, mas este nos segura pela tensão que ela cria. Mesmo relendo-o, não deixamos de sentir o mesmo pavor que sentimos quando de sua primeira leitura”.
TRECHO: - Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.