As miniaturas foi escrito enquanto eu estava grávida, em 2011. O livro anterior, Os malaquias, foi baseado em experiência familiar, uma convivência com o texto carregando fardo emocional incompatível com a frieza necessária para equilibrar o texto, levei sete anos para concluí-lo. Com o seguinte parti de outro zero. Veio a ideia inicial, rabisquei os primeiros capítulos e resolvi me inscrever num edital, desenvolvi o romance com auxílio da bolsa de criação do Programa Petrobrás Cultural, uma ajuda financeira que permite um mergulho intenso e sem interrupção. No projeto havia uma voz, a voz do personagem principal. Esse sujeito não teria vida humana, mas funcional, a serviço de um Edifício que não se poderia contar existência de fato. Primeiro desafio, a voz sozinha não estava dando conta de contar a história, em vez de ele descrever duas pessoas que conviveriam com ele, dei a primeira pessoa para elas e o personagem principal deixou o cento do palco para ser lateral. São as delícias da escrita, que mesmo que eu faça um mapa de navegação, quem dirige o barco são as situações que se somam e pedem uma lógica própria que desconhecemos no estágio inicial de escrita. Demorei muito para entender essa lógica, ela ficou mais clara com a leitura do editor, mais tarde. Assim que decidi por três personagens dividindo o palco, engravidei. Um colossal evento biológico se colocou em marcha em meu corpo e, prevendo que próximo ao parto, durante e depois eu estaria impossibilitada de escrever, acelerei a primeira versão do romance até que meu filho já pesasse para baixo. Consegui e estava certa, cheguei da maternidade uma ursa com pata macia e dentes afiados procurando o fundo da caverna. Para o texto foi bom, pois ficou na gaveta, também em sua caverna recebendo tempo. Quanto finalmente o retomei fiquei aliviada, o livro já estava lá. Ao deixar um livro descansando corre-se o risco de ele ser rejeitado na posterior leitura mais fresca e distanciada. Agora era polir, fazer acertos finos e outros nem tanto, mas havia um livro. O romance trata de um suposto Edifício que sugere sonhos através de miniaturas, as pessoas que recebem as sugestões não sabem que passam necessariamente por ele. A ideia surgiu ao ler Sobre a interpretação dos sonhos de Artemidoro, um grego do século II que analisa centenas de sonhos, assim como ensina a arte da onirocrítica. Desse termo onirocrítica tirei o personagem oneiro, pensei numa história onde esse oneiro trabalhasse não no pós-sonho, mas no pré-sonho. Tudo se passa no Edifício Midoro Filho (esse nome em homenagem ao autor), que fica no centro de São Paulo, toda aquela concretude urbana, o marco inicial da cidade e do sonho. Os capítulos se dividem entre o trabalho do oneiro e duas pessoas que recebem suas sugestões, uma mãe e seu filho. O código do Edifício é claro, não se pode atender parentes, mas o oneiro entra em obsessão por eles. O tempo todo escrevi com desconfiança de tudo, impressionante como o livro anterior não ajuda o próximo, é sempre a primeira vez. Os malaquias foi uma oferenda para os meus ancestrais, escrito num buraco sentimental que também me deixou desconfiada da escrita exatamente por isso. Em As miniaturas entrei em outro buraco, o da burocracia. Essa burocracia está em vários níveis: burocracia biológica (a gestação em si com sua lentidão própria, etapas/exames a cumprir); burocracia institucional (prazo de entrega do livro); burocracia da própria inspiração (o escritório de Bartleby, o escrivão, do escritor americano Herman Melville, minha releitura preferida); burocracia de uma condição do sonho (ter como matéria-prima, entre outros elementos, o cotidiano burocrático). As regras invadiram o livro, a contagem do tempo, os objetos que se repetem diante dos olhos. A miniatura é o ponto de contato entre as pessoas reais que passam por lá e o Edifício, por isso o título. As miniaturas são objetos de plástico, bem ordinários, no Edifício Midoro Filho não há profecias nem mensagens, anjos e demônios têm a importância de um patinho de banheira. Precisei de alguns meses para reler e retomar. Meu escritório havia se transformado num quarto infantil, botei minha mesa num canto da sala que logo se transformou em brinquedoteca. Revisei o romance numa padaria tão logo ela abria as portas, aproveitando o intervalo das mamadas do meu filho. Tudo com lápis, correção que também podia ser corrigida, depois releituras e intervalos para descansar o texto. O título só foi definido no fim do processo e estava diante dos meus olhos o tempo todo. É como se o livro já estivesse também na minha cara há tempos, desde o curso técnico de publicidade que fiz na adolescência, desde a aula de psicologia que dizia que o amarelo dava fome e a repetição dos produtos gerava a necessidade de consumi-los e de sonhar com eles.