O restaurante não estava cheio. Na mesa ao lado, uma senhora se inquietava com as moscas rodopiando ao redor do couvert. Olhei minha esposa e lhe disse que nossa vizinha maestrina tinha alguma razão naquela regência desengonçada, cuja batuta era uma faca remelenta de manteiga... Restaurante de hotel fazenda, ao ar livre, é assim mesmo, respondeu. Então, tá. Primeira e última vez.
Minha cunhada não riu. Foi num domingo, há mais de onze anos. Eu e minha companheira resolvemos convidá-la para um almoço diferente, num hotel fazenda que nem existe mais. Ali se deu a gênese do romance as visitas que hoje estamos, publicado faz pouco.
O que leva um autor a mentar sua obra? A curiosidade é pertinente, não apenas para os leitores, está claro, mas para o próprio artista que, muitas vezes, não consegue desgrudar as mãos em concha das orelhas, ouvindo de si, continuamente, o sussurro emudecido de sua criação. Seria a literatura, portanto, apenas um estrondo de silêncios mais ou menos provocativos, nascidos na singularidade do nada? Não creio.
Assim como um país inteiro, nos momentos de crise, volta-se para os documentos fundadores de seus caracteres, um escritor não pode se esquecer do que o levou a criar, sob pena de se perder no pior dos mundos, ínfimo universo big-bangueado nos confins de seu bestunto. E ponham bestunto nisso... Mas voltemos logo ao hotel fazenda, antes que aquela senhora espante todas as moscas e, com elas, as lembranças, cujas asas são mais tênues que as dos insetos.
A mastigação, talvez pelo simples fato de ensejar o silêncio, não sei, ou aumentar a circulação sanguínea na caixa craniana, quem sabe um pouco das duas coisas, acaba fazendo com que ruminemos melhor as ideias. É fato. A parenta engoliu antes da hora, tenho certeza, porque vi um pedaço maior de esgar em sua fisionomia, só para não perder a frase que chegou à boca com sensíveis traços de malagueta.
— Meus filhos andam tão chatos! Estava ontem deitada no sofá de casa, pensa bem. Filminho vagabundo, mas o tempo ia passando e... Mãe, sai do sofá... Vai lá pro quarto. Meus amigos chegam daqui a pouco! Tem cabimento? Expulsa da minha própria sala? Tem cabimento?
Toda refeição é ritualística. Os comensais dividem o pão, repartem a bebida e trocam experiências que, bem ou mal, conformam os dias. Guerras começaram e terminaram assim, entre coxas e risotos. Propostas de casamento e namoros também, entre outras coxas e risos empanados sob a toalha de mesa... Mesmo sozinho um homem não deixa de dialogar consigo, enquanto dobra a folha de alface e deita uma rodela de tomate sobre o bife. Nesse caso, entretanto, está à mesa com o pior dos convivas...
— Olha, Cida. É a vida... O nome disso é envelhecer. Ficar velho é ir perdendo aos poucos o espaço vital. Começa desse jeitinho. Quando jovens, o mundo é pequeno, apertado pelas perspectivas alexandrinas das conquistas sonhadas. Ninguém percebe, no entanto, a velocidade do sol. Ele rasga o céu em seu carro, mas hoje Apolo não o conduz. É Ayrton Senna, isso sim, metendo o pé na tábua de 700 cavalos... E você sabe o fim da história, né?
— Cruz-credo...
— O corpo vai encolhendo e, com ele, o universo ao derredor. Você perde a sala, depois a cozinha... Mamãe, nem chegue mais perto do fogão! A senhora viu o que fez ontem? Quase tocou fogo na casa! Por fim, está confinada ao quarto, e olhe lá... Nem ao banheiro pode ir sozinha, que a cadeira não passa na porta, e nenhum parente quer se comprometer com pedreiro e despesas para alargar a passagem. Então vai ter de se escorar em alguém, que, com certeza, vai alicatar seus braços com mais força, descontando em vergões a desgraça de ter de arrastar uma velha fedida o dia inteiro...
— Antonio, que coisa mais triste!
— É, mas não acaba assim, não. Você vai perder o quarto, também. Sabe o que vai sobrar? A gaveta direita da cômoda. Você então vai trancar ali umas coisinhas e esconder a chave no bolso da camisola. É isso. Vai ser aquela gaveta e estar nela, até o fim, visita em sua própria casa...
— Ah, para com isso. Até perdi a fome...
Parei. Mas o desconforto de minha cunhada ficou zoando nos ouvidos, acompanhado da sinfonia surda daquela senhora que se rendeu às moscas, depois, cobrindo o prato principal com guardanapos de papel. Uns pedaços de pão serviram de peso, porque ventava. Ela ficou assistindo ao pouso dos insetos resignada. Os bichinhos não queriam os restos de pão, mas o que se escondia por debaixo do papel. Qualquer criança perceberia isso. De algum modo, a senhora derrotada intuiu que a vida era daquele jeito. E a tontura que sentiu não vinha, por certo, do voo inútil ao redor dos pratos. Foi a cervejinha, deve ter pensado. Foi a cervejinha...