Ilustração por Janio Santos

— Já existem os livros excelentes.

 

Todos os dias, quando começo a escrever, os espíritos atormentados nas estantes repetem pra mim esta terrível frase de Wilde. Por isso, busco refúgio nos quartos de hotel. Longe dos livros. Mas contra mim pesa ainda a memória e só pelos títulos grunhindo na mochila, seria razoável parar de escrever, como fez ontem o velho Phillip Roth. E por que não paro? Porque a infelicidade deriva da nossa incapacidade de permanecer no quarto sozinhos, berrou lá de casa o livro de Pascal. Roth cansou do mundo dos “autores”? Talvez. Só no Brasil, eles são 50 milhões, filhos tuitários da autopublicação, amargando nos blogues, no Facebook, montando praça nos clubes de leitores. Autores dos smashwords aos lulu-ponto-com da vida, se oferecendo com suas curvas deliciosas:

 

— Tell your story, baby.

 

Nos Estados Unidos, 65% dos livros nascem autopublicados. 250 mil por ano. Não dá pra ignorar a degeneração. Esses autores têm seu próprio mercado. Seus próprios prêmios, suas redes de distribuição, suas igrejas próprias. Seu deus on demand. Contos, novelas, biografias, receitas da vovó... ali, pelo menos, está decretado o fim dos gêneros. Se ouvem o lamento das estantes ou os urros silenciosos dos e-books, como eu? Não. Não precisam. Nem eu preciso, na verdade.

 

Perguntaram-me ontem se não me desagradava estar na “contramão” do mercado, publicando contos. Quando um escritor se preocupa demais (eu disse: demais) com o mercado, aí, sim, ele está numa contramão perigosa. Porque, no mercado, o tráfego está mais para as ruas da Índia que para as avenidas ‘civilizadas’ de Londres. Requer choferes profissionais. Pilotos-de-fuga.

 

Não sofro das coceiras do romantismo, vocês sabem. Como editor, palavras como marketing e vendas estão em todos os versículos da minha bíblia. E, enquanto escritor profissional, também.

 

Mas, quase invariavelmente, quem não está no mercado se preocupa mais com ele do que quem está... Arráá! Target. Bingo! E disso se desfia o mesmo rosário de queixas chatas e, quase sempre, ingênuas. E piora quando o assunto é capturado para as discussões nas academias que, convenhamos, nada entendem de mercado. E, hilariamente, o mercado entende muito sobre academias, como Dionísio entende mais sobre Apolo. “O mercado prefere contos a romances e nunca poesia”. Ora, digam-me algo novo.

 

Contramão? O público prefere romances desde o século 19, ou desde sempre, mas nem por isso Borges caiu na esparrela de escrever um. Nem João Cabral estava na contramão com sua poesia — e vão desculpando a covardia das comparações.

 

No fundo, estão esquecendo de mencionar uma verdade antiga: o mercado vai se interessar sempre por escritores de qualidade, escrevam eles contos, romances, poemas, receitas da vovó, teses de doutorado sobre mercado editorial, inclusive.

 

Para esse Dionísio, não há contra/dicções. Ele é um deus mutável e rápido. Transforma-se em Apolo quando bem quer. Como todo deus, não tem o mínimo de escrúpulo. O mercado sabe que as pessoas são o mercado. Que gêneros são invenções acadêmicas. Ferramentas da crítica.

 

Pergunte a qualquer editor [editor de verdade]: “— Entre o gênero e a qualidade, onde você investiria mais dinheiro?”

 

Então, eu deverei me preocupar tanto com mercado e gêneros? Eu, não. Um escritor de verdade não deve se orientar pelas demandas da crítica nem do mercado: essas duas coisas são uma só, antes de me perguntarem.

 

No meu caso, sob qualquer gênero, tenho a convicção de escrever uma obra coesa. Assim, sobrevivo — talvez pela misericórdia divina. Se há algum lugar para mim no mercado da Literatura, o alcançarei pela via mais sincera, não importa se contra a sinalização ou não. Só não vou me trancar em jaulas nas livrarias nem me transformar em performático e midiático só pra vender um livro. Mas vou usar todas as armas da linguagem para atingir o peito do leitor menos preguiçoso. E isso a Literatura de verdade ainda pode fazer: derrubar o leitor. Como diz Poe, na única teoria aproveitável sobre o conto, “buscar a elevação da alma”, presente na poesia e no romance de qualidade também. Escrevo pra esse leitor que não tem medo de se colocar na linha de tiro.

 

Em palavras menos seculares: meu mercado não é deste mundo.

 

Por isso, continuo escrevendo romances — depois de dois livros de contos até bem “assimilados” pelo mercado e pela crítica. Uma premiação recente, importante, como um Jabuti, em nada altera minha criação. Mas altera a minha realidade editorial, como o mercado passa a ver os meus livros, claro. (O Jabuti é um prêmio da crítica. Mas é também do mercado).

 

Só não me deixarei confundir com isso que o mercado e a crítica algumas vezes chamam de autores.

 

Autores são uma praga homogênea demais. Escritores tratam de estragar esse bolo de tons tão cinzas. Escritores de verdade têm de se preocupar em escrever, seja como for. Sob as vaias dos livros excelentes, de todos os gêneros, nas estantes. Mas, mesmo assim, escrever hoje melhor que ontem.

 

Escritores tem de ser ver é com a linguagem. Do mercado cuidem as academias. Dos gêneros, a crítica. Dionísio vai usando Apolo pra provocar a embriaguez que Dionísio precisa. Não é tão complicado assim, é? Ou eu, que não bebo, bebi vinho demais?