ARTE SOBRE FOTO DE TIAGO BARROS

 

Quando comeceia escrever Passageiro do fim do dia, não sabia o que estava fazendo. Não tinha ideia de que tipo de livro poderia ser. Nem mesmo sabia se eu desejava fazer um livro. A própria noção de livro não me inspirava a mesma confiança que eu sentira na juventude. Naquela época, o livro se apresentava como portador de uma perspectiva crítica e alternativa à visão dominante. De tempos para cá, ao contrário, o livro vem se delineando como mais um produto no mercado global — para não me esquivar da expressão repetida com uma reverência quase religiosa. Isso marca as obras desde sua concepção até seu conteúdo final, passando pelas opções formais e técnicas do autor.

 

Em suma, para mim, não tinha importância se o que eu estava escrevendo era um livro ou não. Desde o início, o que importava e pesava era um assunto, um problema: a desigualdade. Mas eu já havia me dado conta de que não se tratava de mostrar a desigualdade: afinal, quem não a vê? O complicado está na maneira como a percebemos. Na maneira como agem os mecanismos sociais que direcionam e refratam nossa percepção, com o propósito de produzir, reproduzir, justificar, legitimar e por fim esquecer a desigualdade. Eu queria investigar por que toda tentativa de escapar a esses mecanismos é acompanhada de tantas complicações e dificuldades. Entendi que esse deveria ser o conteúdo da tensão que eu queria imprimir à narrativa.

 

Lembro que eu escrevia um pouco, parava algumas semanas, ficava pensando no que havia escrito. Reescrevia tudo e avançava um pouco mais, parava de novo, criticava tudo e recomeçava. Assim, acabei me sentindo mais seguro de que podia escrever um livro, um romance, pois bem ou mal eu estava trabalhando sempre a partir de uma consciência crítica. Durante uns quatro anos, foi assim que escrevi, até terminar o livro.

 

Desde o início, quis questionar a maneira como a desigualdade cria distâncias tão grandes que podem fazer a massa trabalhadora surgir como um enigma para o observador externo, impedindo a compreensão de suas estratégias de resistência e de sobrevivência. Achei que vistas as coisas de ângulos que talvez só um romance pode apresentar, seria possível acusar, no olhar do observador, a suposição de uma superioridade e perceber como isso atua na manutenção desse regime de desigualdade. Investigar o papel desse tipo de mediação no modo de perceber as relações sociais daria mais alcance ao meu livro. Tornaria mais próxima e familiar uma situação em que já não é possível responder apenas sim ou não, certo ou errado.

 

Assim, o livro partiu da convicção não só de que havia algo relevante a ser conhecido, mas também de que escrever, em si, já constituía um meio, um instrumento de chegar a algum conhecimento. E de que, por pouco que fosse, ou por mais problemático que fosse, esse conhecimento podia ser comunicado e compartilhado.

 

Tomar a escrita como meio ou instrumento não me causava o menor embaraço, muito menos a diminuía aos meus olhos. O postulado de que a linguagem literária pode, ou até deve, constituir um fim em si mesma já me parecia, desde algum tempo, uma espécie de mística, que nos leva a um passo do esotérico. Pois, querendo ou não, pressupõe que a literatura se situa numa espécie de anel mágico, imune aos efeitos das relações sociais, que incidem sobre as atividades humanas mais comuns. A tese de que tal estratégia permitiria alcançar uma perspectiva crítica mais consequente me parecia já ter sido desmentida de forma bem clara. Não só pelo legado tímido deixado por décadas de experiências nessa direção, como também pela facilidade com que essas técnicas e seus resultados são assimilados pelo conformismo em geral.

 

A exemplo dos outros livros que escrevi, o ponto de partida de Passageiro do fim do dia foi uma experiência pessoal — acumulada, amadurecida e concentrada sob a pressão de um sentimento constante de haver algo errado e inaceitável à minha volta e sobretudo em mim mesmo. Durante 27 anos, peguei dois ônibus para ir ao colégio onde dava aulas à noite e dois ônibus para voltar para casa. A circunstância de eu ter demorado tanto tempo para começar a entender o significado mais geral daquela situação — a opressão cotidiana, repetida num meio de transporte, a violência sistemática direcionada contra uma classe social bem definida, que assim tinha uma parte de sua vida tomada à força — foi a fonte de meu livro. Ver sem enxergar e sem entender era uma experiência viva da alienação, fruto da ação dos mecanismos sociais de que falei no início deste texto.

 

Terminei de escrever, o livro foi publicado, mas sei que a questão ganhará, e até já ganhou, novas dimensões. Elas precisam ser questionadas. Pois, como a dinâmica histórica é incessante, nenhum livro foi ou é definitivo, nem terá a última palavra.