Em 2008, quando eu estava me preparando para colocar um ponto final em O livro dos mandarins, recebi um telefonema desgraçado: “Ricardo, o André se matou”.

 

Para fazer faculdade, fui morar no interior. Os amigos tornam-se a nossa família. O André era um dos meus irmãos. Depois, a gente se formou e cada um foi para o seu lado. A piada no último mês de curso era a expressão “procurar a própria história”. Ele ficou em Campinas dando aula em um colégio importante. Voltei para São Paulo decidido a investir tudo na ficção. Mesmo assim a gente se encontrava no mínimo uma vez por mês. Eu o conheci há dez anos.

 

Com exceção da minha família, o André foi a única pessoa que esteve no lançamento dos meus três primeiros livros. A gente era amigo de conversar até tarde, andar de bicicleta de noite e falar das meninas. Outras coisas só tenho coragem de contar na ficção. Com o passar dos anos, sinto cada vez mais dificuldade para encontrar proteção. Li Coetzee pela primeira vez por indicação dele. Também retribuí, mas não deu tempo: André, você tem que ler Noturno do Chile. Ele comprou, mas antes de abrir resolveu ir para um lugar que eu não conheço.

 

Não sei quanto tempo ele planejou essa viagem. Sobre isso, nunca falamos. Quando fui para Budapeste, ele pediu um livro em húngaro. Da Austrália, trouxe um marcador de livro com motivos aborígenes. Buenos Aires, apesar de nunca ter saído do Brasil, ele conhecia tão bem como eu. Tínhamos personalidades diferentes: fui conhecer o mundo; ele viajou para um outro.

 

Nos primeiros meses depois do telefonema, racionalizei. Não pensei muito no assunto. Terminei e publiquei o meu livro. Fui dar aula para arranjar dinheiro e pagar as dívidas que a trabalhosa redação de O livro dos mandarins me causou. Também achei que um ato simbólico me separaria com mais facilidade do meu grande amigo: joguei no Rio da Prata, em Buenos Aires, uma camiseta linda que ele tinha me dado. O André só comprava presente bom.

 

Ele dizia que era um cavaleiro templário. Minhas namoradas o adoravam. Quando conheceu a K., ajoelhou-se e entregou uma flor que carregava na mochila. A S. o achava um charme. No começo, isso me deixava intranquilo, já que o André era muito bonito. Os olhos dele, antes da tragédia toda, paravam o trânsito, como se diz aqui em São Paulo.

 

Quando voltei a escrever, depois do descanso que tiro entre cada livro, percebi que estava com um problema: eu só conseguia falar do meu amigo. A propósito, dois dos textos desse período saíram aqui no Pernambuco mesmo. Tentei escrever um conto narrado por um suicida, mas não deu certo. Fiz algumas pesquisas e descobri como as religiões, por exemplo, são violentíssimas com os suicidas. Acho que tenho algo importante para dizer: a gente não sabe.

 

O assunto começou a me dominar. Lembro que eu não aceitava ninguém colocando qualquer problema em um suicida. Comecei a ficar muito nervoso e, como se não houvesse outra saída, planejei O céu dos suicidas. Primeiro, eu era um escritor, autor de Duas praças e O livro dos mandarins. Não deu certo de novo. Então, virei um especialista em coleções. Já tive os meus selos, é verdade, e nesse momento estou concentrado ajuntando camisetas de corrida. Mas não vou dizer o que O céu dos suicidas tem de não ficção. É um segredo que quero ter com o meu amigão. O nada seria a resposta mais cômoda, mas eu tenho medo dessa palavra.

 

Escrevi o romance em meio a uma enorme crise existencial, emocional e afetiva durante todo o ano de 2011. Se o André estivesse aqui, ele teria me ajudado. Eu não soube o que fazer no pior momento da vida dele. Ainda sinto alguma culpa, embora tenha conseguido elaborar muita coisa. Os livros cercam todas as paredes do galpão onde moro porque eles me protegem. Aqui atrás, ninguém me derruba.