Publicado, em 2001, o “romance” Eles eram muitos cavalos, encontrei-me num impasse: havia proposto uma reflexão sobre o “agora”, mas talvez necessitasse compreender antes “como chegamos onde estamos”. Então, comecei a elaborar o Inferno provisório, uma “saga” composta por cinco volumes (Mamma, son tanto felice, O mundo inimigo, Vista parcial da noite, O livro das impossibilidades e Domingos sem Deus), que tenta subsidiar essa inquietação, discutindo a formação e evolução da sociedade brasileira a partir da década de 1950, quando tem início a profunda mudança do nosso perfil socioeconômico, de um modelo agrário, conservador e semifeudal para uma urbanização desenfreada, desarticuladora e pós-industrial, e suas consequências na desagregação do indivíduo.
Evidentemente, essa descrição abarca apenas a superfície da narrativa. Contudo, é o entrecruzamento das experiências “de fora” e “de dentro” dos personagens o que me interessa. Importa-me estudar o impacto das mudanças objetivas (a troca do espaço amplo pela exiguidade, a economia de subsistência pelo salário etc) na subjetividade dos personagens. Erigir essa interpenetração da História com as histórias, acompanhar a transformação do país pelos olhos de quem a realiza sem o saber, eis minha proposta.
Só que não compreendo uma reflexão sobre essa questão sem que sejam colocados em xeque os próprios fundamentos de gênero. Do meu ponto de vista, para levar à frente um projeto de aproximação da realidade do Brasil de hoje, torna-se necessária a invenção de novas formas, em que a literatura dialoga com as outras artes (música, artes plásticas, teatro, cinema etc) e tecnologias (internet, por exemplo), problematizando o espaço da construção do romance, que absorve onivoramente a estrutura do conto, da poesia, do ensaio, da crônica, da oralidade...
Os cinco volumes do Inferno provisório são compostos de várias unidades compreensíveis se lidas separadamente, mas funcionalmente interligadas, pois que se desdobram e se explicam e se espraiam umas nas outras, numa ainda precária transposição da hipertextualidade. Então, pode-se ler de trás para frente, pedaços autônomos ou na ordem que se quiser estabelecer, assumindo um sentido de circularidade, onde as histórias se contaminam umas às outras. E a linguagem acompanha essa turbulência — não a composição, mas a decomposição.
Definido o tema, definida a forma, restava-me ainda uma questão: para que escrever? Para mim, escrever é compromisso. Compromisso com minha época, com a minha língua, com meu país. Não tenho como renunciar à fatalidade de viver nos começos do século 21, de escrever em português e de viver num país chamado Brasil. Esses fatores, junto com a minha origem social, conformam toda uma visão de mundo à qual, mesmo que quisesse, não poderia renunciar. Fala-se em globalização, mas as fronteiras entre os países caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à mediocrização, à tentativa de aplainar autoritariamente as diferenças culturais.
A realidade se impõe a mim e o que move o meu olhar é a indignação. Não quero ser cúmplice da miséria nem da violência, produto da absurda concentração de renda no meu país. Por isso, proponho, no Inferno provisório, uma reflexão sobre os últimos 50 anos do Brasil, quando acompanhamos a instalação de um projeto de perpetuação no poder da elite econômica brasileira, iniciado logo após a Segunda Guerra Mundial com o processo de industrialização brutal do país, com o deslocamento impositivo de milhões de pessoas para os bairros periféricos e favelas de São Paulo e Rio de Janeiro.
O imigrante, a qualquer tempo, carrega consigo a sensação de não pertencimento, fazendo com que a sua história pessoal tenha que ser continuamente refundada. Partir não é só desprender-se de uma paisagem, de uma cultura. Partir é principalmente abandonar os ossos dos antepassados, imersos na solidão silenciosa dos cemitérios. E os ossos são aquilo que nos enraízam numa história comum, feita de dor e luta, de alegrias e memórias. Rompido esse lastro, perambulamos sem saber quem somos. E se não temos autoconsciência, se permanecemos imersos na inautenticidade, não reconhecemos o estatuto do outro, do diferente de nós. E perdido esse reconhecimento, instaura-se a barbárie. A arte serve para iluminar caminhos: e se ela modifica o indivíduo, ela é capaz de modificar o mundo. Para isso, portanto, escrevo.