“Dá pra você encaixar o Zaratustra entre um Freud e outro nos próximos anos?”, perguntou-me o editor da Companhia das Letras antes de saírem os primeiros volumes da coleção de Freud. Eu já havia traduzido dez obras de Nietzsche, mas pensava em deixar Assim falou Zaratustra para o final, por já existir em português uma tradução – a de Mário da Silva, publicada nos anos 1970 – que me parecia recomendável. Ao iniciar a coleção de obras de Nietzsche, 20 anos atrás, meu objetivo era traduzir todos os textos que ele mesmo publicou enquanto vivia — era e continua sendo (ou seja, não pretendo incluir os chamados “fragmentos póstumos”). Além do Zaratustra, faltavam apenas O nascimento da tragédia e as quatro Considerações extemporâneas, quando ouvi a solicitação do editor.
Ele argumentou que era um pedido dos leitores, que chegava tanto através do pessoal de vendas como, por e-mails, diretamente ao departamento editorial. Nunca me preocupei muito com as vendas (talvez por elas serem boas...), mas é impossível não levar em conta os anseios dos leitores, ainda mais porque eu próprio já os havia escutado, em encontros casuais e em palestras.
Experimentei traduzir o prólogo de Zaratustra já em 2009, fiquei entusiasmado e concluí a primeira das quatro partes no início de 2010. Depois de publicados os três volumes inaugurais das obras completas de Freud, retomei o Nietzsche e, excetuando os intervalos para acompanhar a preparação de mais três volumes de Freud, prossegui o trabalho até concluí-lo, em agosto deste ano (a publicação de seis volumes de Freud em pouco mais de um ano só foi possível porque eu já os vinha traduzindo há muito tempo; costumava alternar um ano com Nietzsche e outro com Freud, sendo que guardava as traduções deste para quando os direitos caíssem em domínio público).
Traduzir Zaratustra acabou por ser uma experiência mais prazerosa – e menos trabalhosa – do que a que tive com a maioria dos outros volumes de Nietzsche. A tradução que me deu o maior prazer foi a primeira de todas, a de Ecce homo, seu ensaio autobiográfico (foi também minha primeira tradução do alemão, tendo aparecido no final de 1985). Lembro-me que às vezes, à noite, relia em voz o que havia feito durante o dia, comovido com a intensidade e a beleza das frases. Nunca mais tive o mesmo prazer em traduzir, talvez pelo fato de que estava me dando conta da musicalidade das palavras impressas e de como produzi-la – ou seja, estava me descobrindo como prosador. Embora já tivesse redigido uma tese de mestrado em história que, segundo dizem, é bem escrita (sobre a revolta da Sabinada, ocorrida em Salvador em 1836), eu ainda vivia em “estado de inocência estilística” (na expressão do próprio Nietzsche).
Também foi menos trabalhosa no conjunto, porque o estilo de Zaratustra é bem diverso do das outras obras de Nietzsche. Eu sou um trabalhador lento; uma página me toma algumas horas, porque acho que é preciso tratar cada linha como se fosse um verso de poema. Não faço uma primeira versão que depois é revista e esmerilhada, como fazem outros (excelentes) tradutores. Leio a frase original, vejo como ela é vertida em várias traduções do livro em outras línguas, consulto dicionários, fico cismando, matutando e jogando com a ordem dos termos na cabeça, e por fim digito a frase no teclado. Ela demora a aparecer na tela, mas quase não haverá alteração depois.
A prosa de Zaratustra é feita de períodos mais curtos que a dos outros livros do autor, com menos orações subordinadas e frequente repetição de termos. Os parágrafos costumam ser breves, e são numerosos os capítulos: 80 no total. Publicado em quatro partes, entre 1883 e 1885, o livro é uma peculiar mistura de narrativa poética, reflexão filosófica e indagação religiosa, contendo os discursos e aventuras do mítico profeta Zaratustra. Numerosas ideias encontradas em outros textos de Nietzsche reaparecem ali numa linguagem transfigurada, mas são claramente reconhecíveis. É uma prosa meio encantatória, que visa tanto seduzir quanto esclarecer.
Já o estilo das outras obras é sobretudo reflexivo, feito de longos períodos em que se criam ondas ou arcos de tensão. Nos dois casos há um emprego abundante de recursos que normalmente associamos à poesia, como aliterações, metáforas, rimas, jogos de palavras, emprego que é apenas mais explicitado no Zaratustra.
Oferecendo essa nova tradução aos leitores brasileiros, tenho a esperança de que ela seja acolhida com a mesma benevolência com que receberam as anteriores.
A nova edição de Assim falou Zaratustra é lançada na primeira quinzena de dezembro. Até o fechamento da edição a editora ainda não tinha definido a arte da capa e o preço da obra.