Gosto de pensar que a poesia pode educar nossos olhos. Escrevo com esse desejo: que as coisas se tornem mais nítidas, em todos os sentidos. Se escrever para a infância tem certo caráter de urgência, a tarefa é, por outro lado, mais plausível, pois a educação dos sentidos parece mais fácil e destinada a maior êxito quando meios e modos de percepção das coisas, assim como a constituição do mundo interior, estão recém-inaugurados.
Água sim nasceu desta vontade muito simples: fazer com que meus pequenos leitores olhem a água; que, antes de levar o copo à boca, deixem os olhos, por um instante, admirar a transparência, o tremular do líquido; que olhem para a chuva, que a vejam não como um evento mais ou menos desagradável, mas como uma beleza enorme e gratuita, parte de um ciclo natural, vida, enfim. Quando digo olhar, quero dizer: pensar com os olhos.
Há no livro sentimentos que guardei na memória. Por exemplo, está registrado no breve texto que me apresenta ao final, que desde menino gosto de chuva, de chuvisco, de chuvarada, e já morei numa casa que tinha uma cachoeira bem perto. Mas isso se conjugou a outras realidades, como saber que a água passou a ser, hoje, um problema: o futuro da vida na Terra depende diretamente desse bem natural, finito, cuja preservação é tão difícil quanto premente. As crianças, hoje, aprendem isso na escola, na televisão. Passou o tempo em que água e ar pareciam coisas infinitas e nos davam a sensação de liberdade e imortalidade, como se fôssemos deuses. Essa era da inocência se foi. Assim, pode-se dizer, sem erro, que Água sim tem um sentido ecológico. Mas é fundamental observar que o livro não dá lições nem trata explicitamente de problemas ligados ao meio ambiente. A ecologia ali é, sobretudo, a da percepção, da subjetividade e da consciência poética do mundo. Um dos versos diz apenas: “A lágrima”. Antes de qualquer coisa, a água está dentro de nós. E essa realidade física, biológica, torna-se clara na emoção. A natureza, no livro, está diretamente vinculada ao afeto, pois tudo surge ligado, tramado numa sintaxe que é tanto a da escrita quanto a da interdependência estrutural de tudo que está à nossa volta. Queria que tudo fosse sentido, antes de ser pensado.
A água aparece em todos os seus estados físicos, o que, na escola e em casa, pode ser útil para explicar à criança princípios básicos de ciência a partir de elementos que ela reconhece bem. Além disso, há elementos ambientais, culturais e paisagísticos, como o rio, a mata, o barco, o porto, a pedra, em que aparecem um lagarto, um peixe, mas também um menino e uma menina. Há noções de espaço e de tempo, bem como de encaixe, conexão e transformação, o que sugere à criança uma aliança entre o humano, os seres e as coisas. No mais, penso que há lirismo, delicadeza e uma sutil exploração formal nas modulações sintáticas, nos cortes e nos arranjos mais horizontais ou mais verticais dos versos (são, por exemplo, mais curtos e se apresentam mais verticais quando falam da chuva que cai).
Trata-se de um poema, sem dúvida, ainda que fragmentário ao longo das páginas e constituído por estruturas mínimas. Evitei contar uma história, mas deixo em aberto a possibilidade de uma narrativa, a ser urdida pela criança.
As ilustrações de Andrés Sandoval são belíssimas: uma série de monotipias – técnica de impressão muito simples mas de grande efeito nesse livro. As cores predominantes são o azul e o verde, usadas em texturas e formas instigantes, entre a abstração e a figuração. Andrés mais sugere que explicita, o que tornou o texto escrito ainda mais expressivo.
Penso que o efeito final é o de um belo amálgama entre a palavra e a imagem, capaz de excitar a percepção e a imaginação. É um livro afirmativo desde o seu título: Água sim.
O LIVRO:
Água sim
Editora Companhia das Letras
Páginas 48
Preço R$ 33