Minhas primeiras memórias são de um eu olhando o mundo. E sentindo a aridez do mundo. A falta de sentido que naquele tempo eu não sabia nomear, mas que percebia como escuridão. Minhas primeiras memórias são sempre escuras, em uma casa escura pelo luto para sempre insuperável de uma filha que veio antes de mim e se foi sem ser. E por ir-se sem ser, acabou sendo mais do que qualquer outro dos filhos sobreviventes. Foi só quando a palavra escrita se revelou a mim, por volta dos sete anos de idade, que a vida passou a ter alguma carne que eu pudesse reconhecer, porque a literatura me deu mundos para onde escapar e me emprestou corpos que eu podia habitar. Meu romance, Uma duas, começou ali. Mas eu não podia saber.
Muito, muito mais tarde, em 2008, já com 20 anos de reportagem, eu acompanhei como jornalista uma mulher nos últimos 115 dias da sua vida. Começou com aquela desconhecida corroída por um câncer dia após dia, uma desconhecida que tive de amar para perder meu profundo confronto com a morte. E com a vida. Eu seguiria escrevendo sobre o morrer até o início de 2010. Naquele momento, algo se fechou em mim. Um círculo dentro de um círculo. Mas um círculo aberto, porque na vida não há círculos fechados. Pelas frestas escapava uma voz que gritava sem saber quem era, e só então eu percebi que algumas realidades sóa ficção suporta.
Eu precisava de uma voz na ficção. E comecei a escrever meu primeiro romance. Que por alguns meses se escreveu primeiro dentro de mim, como já acontecia na reportagem. Não sei quem disse que é preciso pescar a palavra no lago do nosso inconsciente. Para mim não foi assim. Eu apalpei a superfície do lago, rodei-o várias vezes e, antes que me decidisse a mergulhar, fui puxada para o fundo escuro, lá onde vivem os peixes cegos. Fui puxada por um monstro mitológico que me foi devorando sem matar. Descobri que podia viver aos pedaços, que escrever ficção era ser aos pedaços. Era saber-se faltante, já que a palavra é para sempre inalcançável.
Neste período, me tornei um zumbi no mundo real. Um zumbi que comia a mim mesma. Não estava aqui. Estava lá. Sem saber exatamente onde estava esse lá, mas sem poder ou querer sair dele. Comecei a escrever e Laura, a filha, tomou conta de mim. Às vezes eu a odiava, em outras pensava que ela escrevia mal. Mas toda manhã lá estava eu, sentada diante da minha escrivaninha-xerife, com Laura nas minhas costas, as longas pernas enroladas no meu pescoço, me cavalgando como um demônio humano.
E um dia acordei com Maria Lúcia, a mãe, falando dentro da minha cabeça, com sua voz de unha no quadro negro. O que você está escrevendo está errado, eu quero dar a minha versão da história. Como odiei essa mãe que tentava me dar ordens no que de mais meu eu acreditava que tinha, a escrita. E como ela me aterrorizou ao me fazer acreditar que havia me tornado esquizofrênica. Noite após noite sua ladainha arranhava meu cérebro. E eu me abismava que o homem dormindo ao meu lado não acordasse com aquela voz.
Até que não pude mais aguentar. E me entreguei. É assim que a mãe invadiu minha ficção, com a mesma força repentina com que ocupou meu cérebro vinda das profundezas de mim, mas inscrita em outra fonte. E então essas duas, mãe e filha, se digladiaram pelas palavras em páginas minhas, cada uma com um corpo diferenciado de letra, que afinal era toda a diferença que conseguiam ter. A filha tentava arrancar-se das entranhas da mãe, mas ao final conseguia apenas tirar pedaços de mim com seus caninos brancos.
Não sei bem quando comecei a amar essas duas, mas aconteceu. Um dia meus dedos estancaram e percebi que o amor estava lá. Misturado a todo o resto, como é para todos, mesmo que alguns teimem em achar que não. E quando os primeiros leitores começaram a brigar com elas, a opinar sobre elas, a reclamar de uma ou de outra, defendi-as com fúria.
Você me pediu para contar como foi o processo de composição do meu romance, e eu não saberia contar de uma forma mais objetiva. Para mim, foi exatamente assim que se passou. Como uma possessão de mim por mim. E não há nada, acredite, mais aterrorizante do que ser possuída por si mesma.
O livro
Uma duas
Editora LeYa
Páginas 176
Preço R$ 34,90