As lembranças do tradutor de Gabriel García Márquez e do mexicano Juan Rulfo

Dia desses, precisei fazer a relação dos livros que traduzi, para responder ao questionário de um professor universitário. Cheguei a 55 livros, e com a sensação de que errei nas contas, que faltam alguns. Lembro bem do primeiro, qua traduzi em 1975 e saiu no ano seguinte: Vagamundo, um belo livro de contos de Eduardo Galeano, que quase aparece no Brasil batizado de Vagabundo por excesso de zelo do revisor. Então, foram, em 34 anos, 55 livros. Mais de um por ano. É bastante, reconheço. Só que não me considero tradutor.
Explico: não sou tradutor porque, entre outras coisas, não é essa a minha profissão, nem eu vivo disso. Respeito quem é profissional, e essa é uma das razões para que faça sempre essa ressalva.
Eu sou incapaz de aceitar uma tradução por razões em termos exclusivamente profissionais. Volta e meia recuso convites para traduzir autores que respeito, ou cuja obra admiro, mas por quem não tenho nenhum afeto pessoal, ou sinto que não fazem parte do meu universo. Na hora de traduzir, sou movido em primeiro lugar por afinidade, por afeto. Eventualmente, por uma curiosidade determinada, forte. Aí, posso virar tradutor. Mas é raro.
Meu ofício é escrever. Sou, então, um escritor que traduz. Traduzir é uma das vertentes do meu ofício.
Cada uma dessas vertentes – os contos, os textos de não-ficção, as traduções – exige rigor e criatividade. No caso específico das traduções, a criatividade se aplica justamente em trazer para o meu idioma o que o autor escreveu no dele. Na busca de soluções, na descoberta da argamassa que liga cada uma das pedras do que foi construído pelo autor. É fazer isso, e desaparecer: livro bem traduzido é aquele que você não percebe que foi traduzido. Estranha determinação, a de se esforçar ao máximo para que ninguém perceba o que você fez. O melhor elogio possível é justamente ouvir que o que fiz não parece tradução.
Na hora de traduzir, começo à mão, exatamente como faço quando escrevo meus contos e meus livros. Só quando o texto começa a ganhar voo, o que pode acontecer na terceira linha ou na segunda página, vou para o computador. Não uso dicionário na primeira versão. Quando tenho dúvidas, deixo a palavra tal como está. Não faço interrupções no ritmo da escrita. Só depois de ter a primeira versão recorro ao dicionário para sanar as dúvidas.
Só com um autor trabalho, lado a lado, palavra a palavra, na revisão: Eduardo Galeano, que conhece muito bem o português.

O PROCESSO
Traduzo três horas, no máximo quatro por dia, sem interrupções, sem fim de semana, sem que nada me tire daquilo. Ou seja: da mesma forma que faço quando escrevo minhas coisas. Claro que volta e meia mergulho e chego a ficar seis ou sete horas escrevendo sem parar. Às vezes, isso acontece numa tradução. Mas é raro. Tenho um limite, justamente para impedir que escrever se transforme em uma coisa mecânica. 
Quando chego ao final da primeira versão, deixo o texto descansar alguns dias. Exatamente como faço com meus escritos. Então releio tudo, com lápis na mão, e vou começando as correções, o polimento das frases, das palavras. Não sei dizer quantas costumam ser as camadas de leituras e correções. Sempre, porém, acontecem pelo menos cinco ou seis releituras lentas, fundas. Não corrijo nada, absolutamente nada, no computador. Imprimo tudo, corrijo no papel, passo as modificações para o computador, imprimo de novo, reviso de novo. Não sei trabalhar no vazio. O papel impresso é fundamental para mim. Sou a festa da papelaria do bairro.
Há 44 de meus 61 anos percorro a América Latina. Sinto que sou parte de uma determinada geração da América Hispânica, muito mais que da minha própria geração brasileira. Esse trânsito fluido não apenas entre duas línguas, mas também (e principalmente) entre dois mundos que no fundo são um mundo só facilita as coisas. Escrevo espanhol com razoável fluidez, brigo em espanhol, faço e desfaço afetos e amizades, posso até sonhar em espanhol. Esse é meu instrumental de trabalho, tanto para escrever como para traduzir. E aqui cabe um detalhe curioso: meus contos publicados em espanhol foram traduzidos por amigos. Algumas traduções que Eduardo Galeano fez para contos meus soam muito melhor em castelhano que em português. Talvez porque tenham sido histórias vividas e sonhadas em espanhol. Ou seja, é um trabalho de parceria afetiva, sempre e sempre.
Não sei, e não acredito que alguém saiba, quais são exatamente os mecanismos da escrita. Mas sei bem qual é a intensidade dessa necessidade, qual a paixão e a agonia que move um escritor. Tenho de ser leal a isso quando escrevo e quando traduzo. De novo, duas vertentes do mesmo ofício e da mesma vida – afinal, só tenho e terei uma.
Quer dizer: quando escrevo – e quando traduzo – a minha não é uma responsabilidade profissional, literária. É muito mais: é afetiva. Sinto que não posso fracassar, não posso decepcionar meus amigos. Então, é uma angústia dupla – a de escrever e a de traduzir – que, no fundo, é a mesma e velha angústia que faz com que gente como eu insista em perseguir a palavra voadora, a que liberta e revela novos mundos, novos sóis, novas sombras. E que faz viver gente como eu.