Certa noite, a lâmpada do meu quarto queimou e decidi esperar até o dia seguinte para pegar a escada do condomínio do prédio e trocá-la. O jeito foi deixar uma vela acesa no quarto e apagá-la só quando eu fosse dormir. Então, no início da noite, com o meu quarto em penumbra, fui ler deitada no sofá da sala. Adormeci. Acordei um tempo depois. Quinze, vinte minutos...nunca soube. Me levantei e fui sonolenta até o quarto, talvez para apanhar alguma coisa... mas o que vi me aterrorizou: a prateleira onde estava a vela havia incendiado e o fogo deslizava numa poça de cera derretida.
Corri até o banheiro, enchi um balde com água e joguei sobre o fogo. Ele estalou e avançou na minha direção. Pensei: “Esse troço tá vivo”. Mas logo morreu. Estava tão assustada que sentia um aperto no pescoço. Voltei para a sala, me sentei no sofá, e pensei que podia ter incendiado tudo. Uma vela derretida, um fogo silencioso e eu poderia ter morrido ou ter causado muito estrago.
Havia uma história iniciada no meu computador, o que seria um romance. Bem, o romance virou um conto e a experiência com o fogo me deu a certeza de que eu deveria concluir a trilogia A saga dos brutos. Sempre soube que a trilogia terminaria com uma história sobre o fogo, mas achei que ainda demoraria. Às vezes, a ficção parece cobrar do seu criador sua porção de existência. Não tirava o que aconteceu da minha cabeça. Fui dormir com o quarto cheirando a queimado. Um perfume ardido. Enjoativo. E tudo aquilo me lembrava que o fogo é ardiloso.
“No fim, tudo o que resta são os dentes.” Essa frase me veio à cabeça, de estalo. E com ela iniciei o romance Carvão animal.
Desde o início, a história se passava numa cidade fictícia, que decidi chamar de Abalurdes. Nada em especial, a não ser a sonoridade do nome. E o cenário era um crematório e, assim, eu podia falar sobre o fogo e sobre a morte. Em seguida, surgiu a ideia do bombeiro Ernesto Wesley. Talvez ele seja atraente em seu uniforme, mas disso eu não sei. Raramente percebo essa nuance dos meus personagens. Eu os vejo do avesso. E o avesso deles é o que sempre me interessa.
Eu tinha dois irmãos, um cremador de corpos e o outro um bombeiro, ambos dedicados ao trabalho. Ambos lidando com o fogo e a morte. Sobrevivendo deles e a eles.
Comecei a pesquisar artigos sobre crematórios, bombeiros e detalhes técnicos. Isso é importante para mim. Preciso entender com o que estou lidando. Dessa forma, posso imaginar, inventar, ficcionalizar de todo o jeito. Afinal, a ficção tem seus pés firmes sobre o real. Só entendendo o real é que se pode ir além, ultrapassar.
Só uma coisa me interessa na arte da escrita: a investigação. Só quero investigar aquilo que me é estrangeiro, que foge ao meu convívio e conhecimento. No momento seguinte, o que me causa repulsa é o que me atrai. O que me gera medo, temor, calafrios, estranheza, isso sim, está na base do que escrevo. Aquilo que escrevo me transforma, pois quando termino um livro, já sou outra pessoa. Tenho outras experiências. Não gosto do lugar comum, de personagens comuns. Desses que se veem a toda hora. O texto precisa me provocar e o tema me confrontar. Quando um texto causa incômodo ou fascínio ou leva o leitor a refletir sobre um novo aspecto, a Literatura cumpre o seu principal papel, que é o de transformação.
Ana Paula Maia, escritora carioca, lançou o romance O habitante das falhas subterrâneas, em 2003, e participou de diversas antologias, entre elas, 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira.
O livro
Carvão animal
Editora Record
Páginas 160
Preço R$ 29,90
Um fogo em silêncio e suas possibilidades
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- Categoria: Bastidores