A crônica não é um gênero fácil. Ela pode resvalar para o conto, o ensaio, a crítica ou mesmo a História. O autor quase sempre escreve na primeira pessoa, expõe seus pontos de vista, se expõe, narra acontecimentos reais ou fantasiosos em que pode ser o protagonista. A crônica exige um ritmo preciso de escrita, concisão, clareza e muita coragem do seu autor. Assim como na culinária os bons cozinheiros sabem o ponto certo de fritura e cozimento, doce e sal, os cronistas precisam dar o corte exato no texto, não deixando que ele se exceda, nem que falte uma única palavra que possa comprometer a exatidão.

Manuel Bandeira foi excelente poeta, crítico de arte e cronista. Nos seus volumes de crônicas publicados pela Cosac&Naify há dois exemplos de textos que namoram o conto, se encaminham para a ficção, mas terminam se resolvendo como crônica. Não faltava talento a Bandeira para experimentar o gênero que quisesse, mas ele preferiu garantir-se como um cronista genial. Augusto Massi escreveu que nas Crônicas da província do Brasil “Manuel Bandeira traçou um risco nítido: uma linha de continuidade histórica que nos enreda desde a arquitetura colonial até a entrada em cena da militância modernista.” Falando de pintura, música, arquitetura, literatura, paisagens ou pessoas, Bandeira escreve crônicas.

O cronista corre também o risco de escrever fábulas morais, contrariando Rudyard Kipling, que sugeria ao autor escrever a fábula, mas não a moral da fábula. Nos dois volumes de Contos filosóficos do mundo inteiro, Jean-Claude Carrière eliminou quase todas “as histórias curtas que pareciam inclinadas a sugerir uma moral, uma recomendação de prudência comum, e, em primeiro lugar, as fábulas, criadas de acordo com um objetivo determinado, de extrair uma conclusão, dar um conselho, expressar uma pequena ideia, associada à noção de conveniência ou de bom senso.” É melhor para a crônica que ela se apresente como sugere Camus em relação à tragédia, sob os rostos do lógico e do natural.

Na onda de textos veiculados na “rede” com autores falsos, apareceu um, supostamente escrito por Luis Fernando Veríssimo, tratando do Big Brother Brasil. Depois de ler o primeiro parágrafo, o leitor de Veríssimo sacava que ele nunca havia escrito aquela catilinária moral. A crônica de Veríssimo é leve e bem-humorada. Mas é possível defender pontos de vista sem tomar um partido, um lado, uma escala de valor? Montaigne é um filósofo de crônicas morais. Dostoiévski assume no romance Crime e castigo que o criminoso Raskolnikov precisa ser punido pelo crime que cometeu. Isso é a base da tragédia e da Psicanálise freudiana: só pela consciência do crime o indivíduo restaura a ordem pessoal e do Cosmo. Isso é moral?

Os melhores temas das crônicas estão nas ruas, nos acontecimentos cotidianos, nas notícias de jornais,em lembranças do autor. Nas 41 crônicas que formam o volume da coleção Crônicas para ler na escola, da Editora Objetiva, a sair nos próximos meses, escrevo sobre temas variados: uma festa de casamento, a experiência num teatro interativo, uma conversa com D. Hélder Câmara, o cinema de Fellini e o fascismo, Franz Kafka e Vincent Van Gogh, a música de Bach e, principalmente, sobre a Literatura e o meu amor pelos livros.

A coleção é uma pequena amostra do que escrevi durante mais de sete anos na revista Continente e venho escrevendo semanalmente na Terra Magazine, há quase cinco anos. Faço a apologia da Literatura, das bibliotecas, peço às pessoas que escutem a voz que nasce dos livros. Mas, também afirmo que todos os ofícios são sagrados e o escritor não é mais que o padeiro, nem o carpinteiro, nem o pintor de paredes e que Deus não prefere o músico ao pescador, como preferiu o Abel que pastorava ovelhas ao Caim que cultivava a terra. Proclamo que os livros aproximam as pessoas de todas as latitudes, pois quando abrimos o mesmo livro e o folheamos, nos tornamos iguais.

Escrever crônicas exige franqueza e coragem. Questionamos os experimentalismos na literatura e também o culto excessivo a Machado de Assis. Vive-se de câmera na mão, focando o que pensamos e vemos, aleatoriamente ou com um objetivo claro. Em viagem por Juazeiro do Norte escreve-se sobre o Padre Cícero Romão e o milagre da hóstia transformada em sangue. Em Praga e Amsterdã, chama-se atenção para Franz Kafka e Vincent Van Gogh, dois símbolos do fracasso e do êxito, artistas incompreendidos no tempo em que viveram e só mais tarde transformados em gênios ou enigmas da modernidade que anunciaram. O cronista precisa revelar suas concepções sobre o mundo e os seres humanos, colocando-se no desconfortável lugar de criador. Um lugar onde mais facilmente ele se expõe e erra, podendo muitas vezes sucumbir à tentação de escrever textos impregnados de moral.


Ronaldo Correia de Brito é autor de Retratos imorais e lança Crônicas para ler na escola (Editora Objetiva), em maio.