O que uma tradutora feminista faz ao traduzir Charles Bukowski? Foi assim que comecei a “nota da tradutora”, um dos paratextos que acompanham a mais recente edição do romance Factótum, de 1975. A tradução foi publicada em julho de 2023 pelo braço brasileiro da editora Harper Collins, dando início ao projeto de edição e reedição da obra do escritor nascido na Alemanha, mas que passou a maior parte da vida nos Estados Unidos, conhecido pelo humor niilista, comentários racistas, performance misógina e, também, por ser um dos mais traduzidos.
Para responder a pergunta, é preciso entender os caminhos percorridos pelo projeto de tradução desse livro, dialogando não apenas com o projeto de escrita do autor, mas também com a proposta de reeditar títulos que já circulam no mercado editorial brasileiro desde meados da década de 1980, principalmente pelas editoras L&PM e Brasiliense. Indo na contramão do braço inglês da editora — que causou polêmica ao mexer nos textos originais de Agatha Christie e Roald Dahl, os tornando mais “palatáveis” à contemporaneidade —, no Brasil o projeto de retradução de Bukowski chegou a quem traduz com a proposta de que os textos seriam acompanhados de paratextos, escritos por especialistas e pessoas influenciadas pela obra, além de total liberdade na tradução, incluindo notas.
Fui indicada pela tradutora Débora Landsberg à editora Lara Berruezo, que apresentou a ideia do projeto editorial. Não são tão corriqueiras as oportunidades, para uma pessoa que traduz, ter certa agência sobre o próprio trabalho. Logo que recebi o convite tive certa resistência não só em começar a desenhar um projeto de tradução, mas também de entender o que de fato eu poderia fazer; que fosse produtivo tanto para o meu percurso nos estudos feministas de tradução quanto para as pessoas que fossem ler Factótum pela primeira ou quinta vez.
De início, algumas questões da obra de Bukowski estavam a meu favor: há anos estudo as décadas de 1940 e 1950 nos Estados Unidos. Traduzo e pesquiso, especificamente, mulheres que circularam na chamada Geração Beat. Como leitora do autor na adolescência, eu sabia que Factótum tratava de situações ambientadas em um período muito próximo dos acontecimentos de On the road, de Jack Kerouac (traduzido no Brasil, com o subtítulo Pé na estrada, por Eduardo Bueno e Antonio Bivar, editado em épocas diferentes), no final da Segunda Guerra Mundial e o pós-guerra. A linguagem coloquial, rápida e direta, sempre foi uma das minhas preferidas na tradução, tornando possível a dança do português brasileiro falado na prosa. O que restava era começar a traduzir e ir percebendo a retórica chinaskiana passando de uma língua para a outra, dessa vez enquanto tradutora e leitora crítica de um autor que não lia há, pelo menos, 15 anos.
Factótum é o segundo romance de Charles Bukowski. Entre as décadas de 1940 e 1960, ele só publicou contos em algumas revistas literárias que se interessavam pelo seu tom niilista e marginalizado, assim como em outras que se dedicavam a nichos da pornografia e do que se chamava de pulp (termo que se refere a revistas de baixo orçamento, trazendo o mais variado leque do que se chama de “literatura de gênero”). No livro, o protagonista às avessas Henry Chinaski já começa em uma cena emblemática: chegando em Nova Orleans, sul dos Estados Unidos, em uma madrugada chuvosa, com uma mala de papelão “caindo aos pedaços”, ele é logo chamado de “branquelo de merda” por uma prostituta que debocha e acena para ele.
O termo white trash, saído da boca de uma mulher negra, desponta no primeiro diálogo do romance e, logo de cara, sabemos que Chinaski não é só um homem que vaga pelo país, pulando de emprego em emprego e de bar em bar: ele é marcado por raça e classe, fazendo desse ponto de partida também a sua retórica. Bukowski faz da primeira cena um apontamento de quem é o narrador e de onde sai o seu discurso. Ao mesmo tempo que coloca o “branquelo de merda” dentro do travessão, o narrador chama a mulher de high yellow, um termo pejorativo para designar uma pessoa negra de pele clara.
Esses dois termos ganharam notas de rodapé, assim como chicanos e as variações para “mendigos”, “vagabundos” e “cachaceiros”. Bukowski não abre mão do léxico das ruas, dos bares e da mendicância, além daquele dos funcionários e donos de negócios que apostam na precarização. Também apresenta cenas de delito da época, como a de uma prisão por embriaguez pública e importunação, por exemplo. Ainda há notas sobre referências a filmes e músicas, bem como a programas de rádio e gírias usadas no período.
O jogo entre white trash e high yellow serviu de primeiro impulso de motivação para a escolha de um projeto de tradução que pudesse brincar com a ideia de fidelidade na tradução. Sinalizo essa palavra por- que existe uma fantasia, sustentada há séculos, de que uma tradução é um trabalho de equivalências perfeitas entre línguas. Hoje se sabe que depende de quem traduz e para que tipo de mediação se está servindo. O teórico estadunidense Lawrence Venuti, por exemplo, comenta alguns casos famosos de “equívocos”, que durante décadas foram lidos como verdade, no livro Escândalos da tradução (Editora Unesp, 2019; tradução de Laureano Pelegrin, Lucinéia Marcelino Villela, Marileide Dias Esqueda e Valéria Biondo).
Venuti diz que “os escândalos da tradução são culturais, econômicos e políticos” e emenda afirmando que a tradução “propicia revelações que questionam a autoridade de valores culturais e instituições dominantes”. Por isso “brincar” de ser fiel: Chinaski precisava soar real em português brasileiro, justamente para que Charles Bukowski pudesse ser exposto, até mesmo sabatinado, exatamente pelo que escreveu, já que, por sua performance, as imagens falam por si só há décadas.
Ser justamente fiel a um projeto de escrita, deixando isso evidente, pode incomodar. Em um dos primeiros textos sobre a nova tradução, o jornalista Bolívar Torres, do jornal O Globo, declarou que o projeto de reedição chega com um “olhar feminino” e forte “aparato anticancelamento”. É interessante pensar que o que é chamado de “aparato” é apenas uma prática recorrente em retraduções de obras que já tenham uma certa recepção e mediação na língua de chegada: uso de paratextos e notas de tradução. E sobre o “olhar feminino”, me parece que há dificuldade em aceitar — sem ler a tradução — o que seria uma tradutora e pesquisadora feminista operando sobre esse texto. Talvez o tal “olhar feminino” esteja em manter a diferenciação que Chinaski faz para “vagina”, “boceta” (infelizmente dicionarizada com “o”) e “xoxota”, dependendo da mulher a que ele se refere ou se relaciona.
O projeto da tradução passa bem longe de querer fazer autor e personagem soarem distantes da masculinidade proposta no livro. Um trabalho de tradução também é um trabalho de crítica literária: seja pelo corpo a corpo que é operação da tradução, seja pelas sucessivas leituras que levam a atenção para construções e repetições específicas que nem mesmo o autor — ou a leitura descompromissada — pode ter total consciência. Por isso, nos estudos feministas, a tradução e a crítica andam muito próximas. Em uma das principais (e inaugurais) obras sobre gênero e tradução — Gender in translation (1996) —, a canadense Sherry Simon aponta que a tradução se tornou um espaço vital de produção cultural, por isso a importância de tradutoras trabalharem com textos que normalmente estão fora do seu escopo. A pessoa que traduz não funciona como agente passivo diante do texto, principalmente em um projeto de retradução de um livro lido por, pelo menos, três gerações diferentes de pessoas no Brasil.
Precisamente por Factótum estar disponível em outras duas traduções — primeiro em 1985, por Carlos H. Knapp, e depois por Pedro Gonzaga, em 2007 —, a edição de 2023 pode chegar com o sabor do que muita gente chama de “transgressão”. Chega, também, com perspectivas diversas sobre a obra — a minha, a de uma escritora e a de um pesquisador, Marcos Santana Lima, que pensa como esse livro foi e é lido.
A escritora brasileira Clara Averbuck — que foi comparada ao Bukowski algumas dezenas de vezes no começo dos anos 2000 — diz, em seu posfácio nesta edição de Factótum, que o autor detestaria quem o lê na atualidade, assim como nós tendemos a detestá-lo. Concordo e acrescento: Bukowski detestaria tudo, inclusive ser tão traduzido e adicionado a uma ideia paradoxal entre contracultura e pop. O seu projeto literário era justamente um incômodo vivido e performado por ele. Quando comparado aos beats ou aos punks, preferia o nada. Claro que o fato de ele querer correr fora dos rótulos — que desenham um caminho ao hegemônico — não o salva de podermos sabatiná-lo na leitura e na construção de uma crítica literária que pense nele menos como alta ou baixa literatura e mais como um projeto de escrita que pensava a performance de um fracasso.
Enquanto cidadãos vivendo o american way of life, Chinaski e Bukowski são o retrato do fracasso do self-made man, a fórmula estadunidense do sucesso, o cara que se faz por si mesmo. Se Hank (apelido do protagonista e do escritor) começa o livro sendo chamado de “branquelo de merda”, também termina com uma cena frenética em que uma stripper desajeitada e nada padrão, balança roupa e corpo ao som de um jazz num crescendo, com ele sentado na plateia, pasmo e mole. Sim, Factótum termina com Chinaski brochado: “E eu fiquei ali, mole”, ele se despede. A maior parte das cenas de sexo são desastrosas, repletas de suor, sangue, pus e desempenhos disfuncionais. Nem as leituras mais dedicadas a livros de banca, na linha de Sabrina, dão conta das descrições que são o sumo de uma masculinidade fracassada. Em uma das poucas vezes que Chinaski interpreta o herói, a cena é construída como um capítulo de sonho, com um texto em itálico do início ao fim.
Esses são apenas alguns exemplos que despontam pela via da tradução. O que fica, para a tradutora de Factótum, é um projeto literário de deboche sobre uma sociedade que fabricou essa figura (real, basta ver os eleitores de Trump) do branco pobre, desempregado, racista e misógino, que precisa estar na literatura justamente para que possamos entender qual tipo de apelo e lugar ainda tem e, principalmente, termos a possibilidade de fazer algo com isso, passando longe da censura que apaga e não amplia as discussões.