Flávio Pessoa


Mimi hapana motocar. Eu não sou caminhão. Encontrei essa frase enquanto lia A ditadura envergonhada, de Elio Gaspari. Num capítulo em que Gaspari faz um panorama do cenário político mundial em meados dos anos 1960, e trata da expedição revolucionária de Che Guevara no Congo. Uma missão de loucos; Guevara — codinome Tato — e seu séquito de cubanos, tentando fazer os rebeldes treinarem para enfrentar mercenários belgas. Che queria que eles marchassem com 40 quilos de pedras nas costas, e os congoleses não viam sentido naqueles exercícios. Então falavam: Mimi hapana motocar. Ou Mimi hapana cuban, eu não sou cubano.

Em seguida, li uma biografia que me caiu nas mãos, escrita por Daniel James. Publicada três anos após a morte de Guevara, estava cheia de lacunas e suposições. O narrador tomava partido, de certa forma tentava explicar os vazios que então existiam. Os ancestrais de Ernesto Guevara Lynch, dizia o autor, haviam participado da corrida do ouro no Oeste Americano. Pensei: poderia fazer um romance sobre a vida de Guevara, começando no Oeste Americano. Ao ler outras biografias — notadamente a de Jon Lee Anderson —, decidi focar meu livro em um período mais restrito, que abrange apenas os dois últimos anos de Guevara: a preparação para a guerrilha na Bolívia até sua captura, em outubro de 1967. Essa foi a gênese de Método prático da guerrilha, minha história particular sobre Che Guevara.

Comecei a escrever uma primeira versão do texto em 15 de maio de 2004. Fiz, no total, três versões do zero, e uma quarta, editando pesadamente a terceira. Terminei o livro em março de 2009, alguns dias antes do nascimento de Antonio, meu primeiro filho. Comecei a escrever em São Paulo. Terminei no Rio de Janeiro, onde moro atualmente.

Escrevi o livro por uma série de motivos. Discutir a mitificação de alguns personagens; questionar o método das biografias atuais, que reconstroem o biografado para encaixá-lo numa história de superação; e até recriar, no meio da selva boliviana, a relação de poder entre chefes e subalternos. Não escrevi uma história verídica. Ao contrário, usei uma história verídica para fazer um romance.

“Podemos esperar obter informações sobre lugares e épocas a partir de um romance?”, escreve Nabokov, em Lectures on literature. “Será que alguém seria tão ingênuo a ponto de achar que poderia aprender algo sobre o passado com aqueles polpudos best-sellers alardeados por clubes do livro sob a rubrica de romances históricos? (...) Certamente que não.” Da mesma forma como não podemos ler Bleak house, de Dickens, “esse romance fantástico sobre uma Londres fantástica”, escreve ele, como um ensaio sobre a capital inglesa no século 19.

Distorci os detalhes; coloquei trechos de diários de um guerrilheiro na boca de outro. Criei um narrador que não só se confunde, como toma partidos errados ao tentar reescrever a história de Guevara. Um pouco como Daniel James, talvez. E inseri, nessa saga boliviana, um personagem inexistente: o brasileiro João Batista. Todas as outras figuras são reais, por mais absurdas que pareçam, com a exceção de um ou outro figurante que entra e sai de cena sem dizer nada.

Ao terminar meu quarto manuscrito, em março de 2009, passei cerca de um ano e meio para finalmente vê-lo publicado. Primeiro, eu o enviei a leitores mais próximos e, após suas sugestões, fiz leves modificações. Mostrei em seguida o manuscrito a Roberto Feith, meu chefe na Editora Objetiva. Conversamos, ele gostou do livro, mas achou melhor não publicar na editora. No entanto foi fundamental para que o livro fosse avaliado pela Alfaguara, na Espanha, que deve publicá-lo em outubro deste ano.

Na metade de 2010, André Conti, da Companhia das Letras, o leu e propôs sua publicação. Me ajudou muito em todo o processo, e o romance saiu no final de outubro do ano passado.

Nesse momento, após certo silêncio do póslançamento, penso menos no livro. A rotina segue, e não posso reclamar da rotina. Tenho de negociar novos títulos literários e editar as traduções que lançaremos em 2011. Ver meu filho de um ano e nove meses aprender a falar a palavra azul. Acompanhar minha mulher a um novo obstetra: ela acabou de ficar grávida de uma segunda criança. Ler clássicos policiais nos tempos livres, e me embrenhar nos romances de Raymond Chandler (e os itálicos dos policiais; e as mulheres de Marlowe: “She was worth a stare. She was trouble.”). Penso num assassinato com reviravoltas para meu próximo livro.

No momento em que escrevo esse texto, fiz cerca de 90 páginas de uma versão inicial do romance. Devo fazer mais três ou quatro versões nos próximos anos, se conseguir chegar até o final dessa. Alguém disse que escrever um romance não nos habilita necessariamente a fazer outros. Passei o último ano e meio trabalhando num projeto que achei que daria um grande livro. Não deu; pelo menos não da forma como está. Espero que com esse seja diferente. Tenho insônias e ansiedade, penso nele dia e noite, e creio que isso só pode ser um bom sinal.

O livro:
Método prático da guerrilha
Editora Companhia das Letras
Páginas 234
Preço R$ 41