Bastidores Marguerite Maria Júlia Moreira Acervo Pernambuco junho.21

 

Ler Marguerite Duras, traduzir Marguerite Duras. Nomeá-la em voz alta com esse s sibilante ao fim, como ela queria (insistia nessa pronúncia – considerada vulgar pela elite francófona – do sobrenome que adotou em homenagem ao vilarejo da família do pai na Gasconha). Deixar que essa experiência vibre em nós. Deixar que ela nos atravesse o corpo, junto ao dos amantes em Hiroshima, mais do que se explique ao nosso intelecto – pois a verdade é que nada sabemos sobre Hiroshima. E só o que podemos é nos deixar comover e modificar por essa “memória inconsolável, uma memória de sombras e de pedra”, que, juntamente com o amor, está no cerne da densa e arrebatadora obra da escritora francesa.

Duras parece, no entanto, escapar sempre a qualquer tentativa de totalização. Essa recusa à totalização é, também, a que Antoine Berman traz ao espaço da tradução, em sua reflexões sobre o tema: “o espaço da tradução é babélico”, diz ele, em tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Berman se opõe, também, a pensar a tradução em termos do binômio teoria-e-prática, preferindo o território da experiência e da reflexão. “A tradução pode perfeitamente passar sem teoria, não sem pensamento”.

Viajamos, em Hiroshima meu amor, entre mundos. O Oriente e o Ocidente; o francês, o japonês, o inglês (numa breve passagem do roteiro) e, neste caso, o português; o nosso tempo e o de Marguerite Duras e os amantes de Hiroshima; a palavra falada pelos atores no filme de Alain Resnais e a palavra no papel. A imagem vista e a imagem descrita. Três continentes. O roteiro de um filme no qual se faz um filme. Tudo isso é também (tentativa de) tradução.

Antoine Berman insistiu na prática de uma tradução que não se valha do texto estrangeiro como um objeto a ser “aclimatado” à nossa cultura (o que ele chama de tradução etnocêntrica). Que também não parta do corte platônico entre o sensível e o inteligível, transportando de uma cultura a outra uma espécie de “essência” que existiria por dentro da casca morta da palavra. Por fim, ele alerta contra uma espécie de “transposição livre” do texto estrangeiro em novos textos que perigam se tornar pastiches, adaptações, recriações – “formas hipertextuais poéticas, que não se tem o direito de confundir com traduções”.

Em oposição às armadilhas listadas, Berman propõe uma tradução ética, pensante e poética – em que suponho necessário respeitar uma certa medida de “susto”, não pretender que a tarefa da tradução seja invisível, mas tampouco marcar com uma inoportuna poética pessoal o texto original.

Com Marguerite Duras, é como se a tradução, num certo sentido, quisesse seguir esse mesmo respeito à pronúncia do s de seu sobrenome. Que possamos trazê-la para o nosso idioma, o nosso país e o nosso tempo sem que ela deixe de ser essa autora francesa de seu tempo, com todas as suas particularidades. Com seu s sibilante – postura de autoafirmação e também reivindicação da simplicidade de sua origem, como sugerem estudiosos. E que a tradução, passando ao largo da triste ideia de traição, seja, antes, uma celebração.

Escrevi um poema chamado Hiroshima enquanto trabalhava na tradução deste que é o segundo título da Coleção Marguerite Duras da editora Relicário. Acredito que o poema tenha sido uma tentativa de traduzir minha própria experiência de leitora e tradutora de Hiroshima meu amor, e termino este breve texto oferecendo-o aqui – como mais uma paisagem possível, talvez, correndo ao lado da paisagem principal.

HIROSHIMA

a fidelidade comovedora dos adúlteros
no ensaio do inconforme
ali em seus corpos repetidos mutilados
o bicho dentro deles dando com o focinho
nas grades
reiteradamente –

em toda parte se encontram
em todos os quartos interinos
e outros
em todos os espaços eletivos
da fidelidade que
em pleno gozo professam
serei fiel
serei fiel

tudo ao seu redor são destroços
o concreto dos edifícios
abocanhado pelo tempo
só o que tem seiva resiste
o que tem sêmen              esse resiste

a toalha cinza do dia
amortalha os passantes lá fora mas
o zelo dos amantes é um zelo
quase épico
a renúncia à penitência
dizer não            dizer não à morte grande
e pública            a morte burocrata
que arranca do jardim o mato em festa

saber tudo sobre Hiroshima
saber algo sobre Hiroshima
nada saber sobre Hiroshima
estar vivo é tão reiterado
susto
e no entanto
às vezes basta para um sorriso
a comovedora fidelidade dos adúlteros