Ser o Outro é o que atormenta, é o que fascina. E muitas vezes é o que inspira. De Téspis, na Grécia Antiga, à sedutora possibilidade de ser apenas um pseudônimo na internet – queremos ser o que sonhamos. Ou o que pensamos que somos. Quantas máscaras teremos se somarmos todas aquelas que usamos ao longo do dia? O mundo pode ser um grande palco, com exatos 15 minutos de fama, segundo Andy Warhol. Ou com 140 toques, segundo o Twitter.
Vamos retroceder ainda mais, bem antes das máscaras serem usadas nos festivais de Dionísio. Sim. Quando as tribos pré-históricas vestiam peles das feras como rituais, pensando assim apoderar-se da força dos predadores. Sair da fragilidade do que se é e transmutar-se num outro Eu. Fazer emergir de dentro de nós uma força desconhecida – aguardando apenas uma hora de revelar-se... e ser o Outro.
Quando Freud indicou que o ID, Ego e Superego estavam sempre em confronto, nos convidou a entrar nos nossos porões mais secretos e ver as feras ali escondidas. Algumas já feridas, outras à espera do bote. Temos também os nossos Doctors Jekill e Misters Hyde que nos assombram. Na ira, na mesquinharia, na violência. Nos pseudos paraísos artificiais fumados e inalados. O que seu Mister Hyde traz à tona? Apenas uma dose de mau humor?
Eu sou 300, já dizia o autor de Macunaíma. Preciso de uma calculadora cósmica: quero saber quantos sou até o presente momento desde que nasci numa sexta-feira ao meio-dia, com o Sol em Gêmeos. Num aeroporto muito distante ao desembarcar eu já não era eu e um Outro me entregava seu script. Na meia-noite de uma rua suja do Recife de repente eu morri. O Outro veio e falou: Oscar Wilde disse que podíamos ver o brilho das estrelas na sarjeta. Eu vi. Eu lambi as estrelas.
Menos é mais, aconselham os parâmetros da beleza e da elegância. Mas o que fazer com os excessos? Além do analista que cobra 200 reais a hora, quem quer meus outros Eus que se excedem? Como uma Grande Mãe, a Poesia desnuda-se e mostra seus peitos: alimente-os aqui, querido. Entrego-os com fome de expressão literária. Nascidos não sei como e por qual motivo, meus outros Eus são carne e palavra.
Os dois agora reunidos em livro podem ser classificados no que a Literatura chama de heteronímia. Ou somos na verdade três? Existe a possibilidade de Raimundo de Moraes ser um heterônimo de alguém que transfigurou-se naquela rua escura do bairro da Boa Vista. Existe a possibilidade desse livro Tríade ser o roteiro de uma quarta vida ainda sem nome.
Ao “receber” o primeiro poema de Aymmar Rodriguéz – inclusive “Cenouras”, encenado na década de 1980 num bar em Olinda – eu não sabia estar iniciando ali uma nova biografia. Que foi se ampliando através de performances, publicação em jornais e fanzines. A poesia maloqueirista de Aymmar ocupou um grande espaço em minha vida, até eclipsar-se durante quase 10 anos. Ele ressurgiu depois de uma violenta dor de cabeça, em Paraty, Rio de Janeiro, em 2009. Naquele mês de julho Aymmar escreveu quase todos os poemas do Baba de moço, o mais transgressivo livro de poesia publicado em Pernambuco. Literatura escrachada até o último grau e desaconselhável para menores de 18 anos.
Semíramis surgiu como um sussurro no ouvido, quando eu estava voltando a morar no Brasil, depois de uma temporada no exterior. Ao ler seu primeiro poema – Confissão, incluso no Tríade – vi que era uma personalidade feminina que estava ali naqueles versos. Isto fica bem explícito quando ela encerra o poema dizendo: “Ele de repente lembra de certas dançarinas do cais / e vê em meus olhares / éguas, cadelas, gatas./ Nunca uma mulher apaixonada.”
Sentimento de estranheza. Aquilo não era eu, nem tampouco Aymmar. Os textos surgiam esporadicamente – diferentes da fúria criativa de Rodriguéz – e pareciam indicar uma unidade temática. Naquela época, claro, os manuscritos ficaram todos na gaveta,
junto com os de Aymmar.
O problema era gerenciar tudo isso. Dois heterônimos antagônicos e de sexos diferentes. Os estudiosos de Fernando Pessoa encontraram elementos coincidentes nos seus três heterônimos mais conhecidos – mas eu, um desconhecido brasileiro, estava envolto num caso único de dois personagens (desculpem, mas detesto a expressão tão em voga chamada “eu lírico”) autônomos e fortes. Se o masculino faz questão de exibir-se, o personagem feminino nem sobrenome tem – Semíramis dispensa nome de família porque ela é atávica, como assinala em outro poema: “Sou a anônima enfim liberta. Então, pra quê ser uma Fulana de Tal se no seu Delivrário de Amor e Morte ela personifica todas as mulheres apaixonadas do planeta?”
O Tríade, apesar das angústias geradas pelos três autores, parece ser um palco em formato livro. Não exorcizei meus demônios, não inventei nominhos exóticos para batizar cada uma das personalidades literárias. Apenas aceitei ser veículo, escrevendo o que o Outro assim mandava. Porque, no final, não são só três pessoas. Esse número com certeza é bem maior.
O LIVRO
Tríade
Editora Edições Bagaço
Páginas 104
Preço R$ 20