Em 2003, eu aprontava o Geografia íntima do deserto e um poema que não cabia no livro me incomodava. Esse poema, sem título, logo eu soube se tratar do germe de um novo trabalho que, apesar de novo, dialogaria com aquele primeiro, como os movimentos de uma composição musical ou os atos de uma peça. Hoje, sete anos depois, A cartografia da noite vem a público e o diálogo é possível perceber já a partir do título, pois se permanece na esfera das relações entre o ser humano e a paisagem, que é, a grosso modo, o fio condutor desses dois livros. Desse modo esclareço já que esses livros fazem parte de um projeto no qual se busca um jogo de claro-escuro, suas nuances, seus aprofundamentos.
A cartografia da noite é um livro magro dividido em cinco partes: Matemática, Projeções, Cartometria, Mapas e Contrarrumo, termos tomados da própria ciência cartográfica e que no livro funcionam como síntese, ou bússola, de cada aba a qual se referem. Ao longo do tempo o livro foi sofrendo vários cortes e embora não tenha contabilizado, acredito que cerca de 10 a 15 poemas que estavam na primeira versão viraram sobra. Finalmente, foram sete versões “oficiais”, e digo oficiais porque a última sofreu alterações não documentadas. Hoje, eu ainda retiraria ao menos mais um poema (intitulado Biografia), o que não é possível porque o livro já está ali, impresso, me espiando.
Durante o processo os poemas também sofreram cortes. Menos é mais, diz a frase, e eu a tomo como método de trabalho. Para ilustrar (e de certo modo homenagear Poe e sua Filosofia da composição), dou como exemplo o poema Rubens, que era composto a princípio de três partes, condensada afinal em uma única:
I
O morto está preso/ dentro de um dia/ como as palavras/ dentro de uma carta./ O morto está preso dentro do seu dia/ como uma noite/ que se tem guardada/ dentro de uma caixa./ Dentro de outra caixa/ se prende/ outra vez/ o morto/ como uma casa/ dentro de um dia/ dentro de uma noite dentro de uma carta/ que contém o morto./ O morto é presa.
II
O dia/ se pendura/ nos lençóis do tempo, / seu pêndulo de enforcado./Escreve uma quietude pura e paira S / U / S / P /E / N / S / O
numa mesma sempre rija madrugada./ O dia/ se mata/ toda noite,/ deus desfigurado/ entre o barro e a estrela./ Pássaro incendiado/ despenca/ e lembra;/ que amanhece.
III
Não se chama/ o amigo de morto./ Ele mira o azul/ enquanto embala/ o sono das redes. / Inventa/ outra língua/ sob a língua/ da terra./ Entre o giz/ e a borracha/ escolhe fazer-se/ e desfazer-se numa terça severa./ Não se chama/ o amigo de morto.
Na versão publicada, o poema fica não só mais enxuto como perde todas as bijuterias e resolve melhor uma questão de ritmo interno no que chamo de “núcleo central”. Nele permanece o essencial, que é a sugestão de um jogo de encaixes, desdobramentos de objetos que contêm outros e que por outros são também contidos:
O morto está preso / dentro de um dia/ como as palavras/ dentro de uma carta./ O morto está preso qual caixa vazia/ que se guardaria/ dentro de outra caixa./ E ainda em outra/ [carta, caixa ou casa] se deposita o morto/ guardado e resguardado/ como uma casa/ dentro de um dia/ como um dia dentro de uma noite/ como uma noite/ dentro de uma carta./ O morto/ é/ presa.
Como não poderia deixar de ser, A cartografia da noite sofreu também influências de várias leituras. Em primeiro lugar, das impressões que ao longo da vida fui colecionando a respeito da noite, esse arquétipo poderoso. Assim, convergem nessa leitura, desde a “noite escura da alma” de São João da Cruz, passando por um mergulho no mito órfico, até chegar às vivências da noite nas cidades dos meus afetos, Arcoverde, Recife e São Paulo. Desse modo, é um livro marcado, mais que qualquer outro trabalho anterior, pelo intertexto. Uma citação de Osman Lins, em Avalovara, funciona na abertura como uma bússola ou credo. E ao longo das páginas se celebra os encontros com Guimarães Rosa, Virginia Woolf, os contos de fadas, Sylvia Plath, Sophia de Mello Breyner Andresen, entre outros autores. Possivelmente há outras influências das quais não dou conta de expor, pois embora escrever um livro seja para mim como montar um mecanismo, há o seu tanto de mistério, de matéria que não se pode perscrutar.
Por fim, é salutar que se diga que o livro que estou escrevendo atualmente, Outra arte, de certo modo fechará a tríade. E ao mesmo tempo em que encerrará um ciclo, abrirá uma janela para uma outra coisa, que eu ainda não sei qual é mas estou muito perto de descobrir.
O livro:
A cartografia da noite
Editora Lumme Editor
Páginas 72
Preço R$ 30,00