Bastidores Hana Luzia agosto2020

 

Quando a quarentena começou, comemorávamos um pequeno feito na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Chegava naqueles dias o primeiro número de nossa agenda impressa com a programação cultural dos meses de março e de abril. Dobrada, tem o formato de um marcador de página; com periodicidade bimestral — assim, o custo diminui e se aproveita ecologicamente o papel.

Levamos um ano para alcançar tal antecedência no planejamento, depois de uma jornada exaustiva para reorganizar a Ação Cultural, somando potência a um cipoal de trâmites inevitáveis da burocracia. O calendário quintuplicou de tamanho, com um time afiado de curadores e a expectativa de um ano mais sereno, porém não menos agitado. Mal aparecia, a agenda impressa se tornou desnecessária com a instituição de portas fechadas.

A burocracia é um demônio passivo com quem se aprende a conviver. Os processos são desenhados para garantir lisura: mais que justo por se tratar de equipamento público. No limite, constituem terreno fertilíssimo para a ineficiência e a procrastinação de quem não tem entusiasmo pelo que faz. No dia a dia pode emperrar desde a contratação de autores até a realização de projetos de maior porte, relacionados à infraestrutura dos edifícios e à digitalização desta que é a segunda maior biblioteca do país em acervo, a caminho de completar 100 anos em 2025.

“Mas não tem aqueles duzentos documentos, né? Certidão negativa de não sei o quê”, me pergunta uma escritora que convidei para uma das nossas lives de agosto,um e-mail que chegou enquanto escrevo este relato para o Pernambuco.

Sim, nós também aderimos às lives, mas não somente a elas. Temos apresentações de teatro e música, aulas e encontros gravados em vídeo às segundas, quartas e sextas, sempre às 19h. Durante três manhãs de junho, fizemos um animado mini-seminário sobre arquivos. Em outubro, repetiremos o Festival Mário de Andrade, criado ano passado. O que estava previsto para o ano será mantido, ainda que adaptado ao digital.

Organizados em teletrabalho, funcionamos quase no mesmo ritmo de antes. Dois meses após ser iniciada, a nova programação online fez dobrar o número de inscritos no canal do YouTube, chegando a mais de 70 mil visualizações. Antes da pandemia, ainda não existia a preocupação de turbinar nossa presença nas redes porque a prioridade era atrair gente para nosso espaço físico. Na retomada, teremos ao menos uma certeza: não vai ser razoável abandonar o que fomos capazes de construir com tal vigor durante a quarentena.

Uma biblioteca, por óbvio, não é sua programação cultural. Nesses cem dias de atividades interrompidas houve tempo suficiente para muita reflexão. O fechamento das bibliotecas brasileiras, bem como a imprevisão sobre sua reabertura durante a pandemia de covid-19, nos levou ao incômodo de constatar que somos menos essenciais que outros serviços. Equipados com uma gama de atendimentos remotos e digitais, acervos como o nosso servem de alento em meio à indisponibilidade de tantas outras atividades culturais devido ao isolamento social. O empréstimo de livros — respeitados todos os protocolos — poderia ser realizado sem causar aglomeração. Devemos caminhar para ser um país em que a noção de serviço essencial seja largamente atribuída às bibliotecas.

Por aqui tentamos de todas as maneiras manter a Mário ativa mesmo de portas fechadas. A nova programação online é a parte mais visível, mas há também muita ação nos bastidores.

A quarentena coincidiu com a chegada de uma nova equipe de planejamento e infraestrutura. Aproveitando que as áreas estão livres porque não há atendimento presencial, ocorreram procedimentos de manutenção nos dois edifícios: a sede, cuja torre de livros atinge 22 andares, e a hemeroteca, com seus 15 andares de jornais e revistas. Bibliotecários da área de atendimento têm realizado pesquisas por e-mail a pedido de usuários. Aqueles que não podem exercer suas atividades usuais se somaram à equipe de catalogação de livros. Uma parte dos bibliotecários passa por treinamentos para aprimorar processos administrativo-financeiros. Outra parte, por treinamentos sobre mediação e clubes de leitura, com o plano de reabrirmos tendo já desenhado um programa mais integrado e ativo para formar leitores. Estamos concluindo agora primeira lista de compras de livros deste ano, que vai atualizar o catálogo tendo em vista a bibliodiversidade, a partir de um edital criado no âmbito das discussões junto ao conselho do PMLLLB (Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca), cujas atividades se iniciaram pouco antes da quarentena.

Se a pandemia de covid-19 atrapalhou, não impediu o movimento. E quando for possível, #vempramario.