Abaixo, um breve texto do escritor Santiago Nazarian sobre o processo de composição de seu novo romance, "Fé no inferno" (Companhia das Letras).
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Sou armênio. Ou meio-armênio. Ou neto de armênios. E há muito sentia que devia contar a história desse povo, o Genocídio – sua maior causa – só não me considerava capaz.
Tenho uma história complicada de família. Minha mãe (armênia, ou filha de armênios) fugiu de casa para se casar com meu pai (de uma família paulistana quatrocentona decadente, com algo de indígena distante), que era artista plástico, já divorciado, com uma filha. Ela nunca mais viu meu avô. Ele aceitou a mim e meus irmãos como netos, mas renegou a própria filha. Então tivemos uma convivência familiar estranha e fui criado bem distante das tradições armênio-cristãs.
Em 2015, ano do centenário do Genocídio, quando entrou um dinheiro do roteiro de Biofobia (romance que lancei pela Record), decidi convidar minha mãe para visitar a Armênia, tentar entender a terra de nossos antepassados (nossa terra?). Daí foi se fortalecendo a ideia de escrever um romance. Fui fazer a lição de casa.
Li tudo o que podia sobre o tema, principalmente relatos de sobreviventes do Genocídio. Logo no início desisti de ler ficção sobre o tema, porque percebi que não poderia confiar nas liberdades tomadas (li só um clássico ou outro, como Os quarenta dias de Musa Dagh). Alguns eu baixei, outros comprei online, alguns minha mãe me emprestou e muita coisa peguei com um amigo doutor em história, especialista no tema - Heitor Loureiro, com certeza a pessoa que mais me ajudou com o livro. Dos que peguei com minha mãe (que como boa armênia não queria emprestar, disse que eu teria de levar um de cada vez), a maioria foi editada pelo meu tio-avô, Fernando Gasparian, da Paz e Terra (já falecido, e fundador da livraria Argumento). Senti como se fosse mesmo um bastão sendo passado, uma “herança ideológica.”
“Herança ideológica” também é uma vertente do “lugar de fala”. Pensei muito sobre isso. Como contar a história de um sobrevivente sem ter sido? Como usar o humor (sarcástico, inevitável) com um tema tão espinhoso? O que percebi era que aquela história agora era MINHA. Os sobreviventes diretos do Genocídio estão todos mortos (os pouquíssimos que restam são centenários, estão velhos demais e eram pequenos demais para se lembrar de algo da época – o livro também trata disso). Então sou o HERDEIRO dessa história. E, modéstia à parte, como escritor armênio (ou meio armênio, ou neto de armênios) mais conhecido do país, eu não só podia como DEVIA contar essa história.
Desde o começo, sabia que essa busca em si poderia ser o romance, uma “auto-ficção”, em busca de minha armenidade, tentar entender a história de minha própria família – na verdade, provavelmente daria um romance mais “respeitável” (e “premiável”) do que o que acabei fazendo: ficção pura (com toques de fantasia). Mas sou ficcionista. (Alguns dizem de gosto duvidoso). Queria realmente usar o tema para criar. Mergulhar mais no universo do Genocídio, recorrendo inclusive ao folclore armênio, do que em fatos.
Depois de tantas leituras, a escrita jorrou. Primeiro escrevi todo o romance passado em 1915, durante o Genocídio. Um menino tentando sobreviver à perseguição dos turcos. Depois criei a moldura em torno disso, nos tempos atuais, do cuidador lendo o livro, fazendo paralelos.
Resumindo bem, o romance conta a história de um jovem cuidador de idosos, homossexual e de origem indígena, que vai tratar de um armênio de “idade avançada”. No serviço, ele começa a ler esse livro, os originais sobre um menino sobrevivente do Genocídio, e suspeita que pode ser a história do velho de quem ele trata.
A criação do personagem do cuidador, Cláudio, também foi delicada. Apesar de compartilharmos a homossexualidade (e algum traço indígena), a origem humilde (e traumática) dele é bem distante da minha – embora próxima de muitos meninos com quem já me relacionei. Preferi mantê-lo com certa distância, ainda que protagonista, sua narrativa é narrada em terceira pessoa (enquanto que a narrativa armênia está em primeira), os episódios chave de seu passado são narrados em flashes (concentrei a densidade no que eu poderia me relacionar, como a relação traumática com o irmão) e acho que paira sobre ele uma visão carinhosa, como um narrador enternecido por seu personagem. Cláudio não poderia estar mais longe do que eu sou, mas poderia ser meu namorado. (Bem... se eu ainda tivesse energia para namorar meninos de 22 anos...)
Obviamente o indígena-homossexual foi escolhido por ter o paralelo de minoria, de cidadão de segunda classe, ainda que nativo, como os armênios no império otomano. E esse paralelo foi essencial para ressaltar a relevância de contar essa história (do Genocídio Armênio) 105 anos depois. Por isso foi importante também cutucar Bolsonaro, Dória, a religião evangélica no texto. O próprio título já é uma grande provocação neste Brasil fundamentalista (e fico TÃO feliz que a Companhia das Letras tenha aceitado sem pestanejar).
Uma das escolhas mais controversas foi a inclusão de elementos contemporâneos (principalmente dos videogames) na narrativa de época. O editor e o preparador chamaram muito a atenção para isso, de modo que minha decisão foi aumentar as referências (em vez de excluir), para deixar claro que são intencionais. São referências pontuais, que não precisariam estar lá (não estão preenchendo lacunas de pesquisa), mas que não apenas enfatizam meu compromisso com a ficção, como geram a impressão de que a o leitor (no caso, o personagem do cuidador) interfere na própria narrativa com seu repertório pessoal.
Não sei direito o que os armênios acharão do livro (numa primeira leitura, minha mãe ficou ofendida, e mudei muita coisa; numa das últimas, a revisora do vocabulário em armênio disse que vinguei nosso povo), mas se há algo que conquistei com essa escrita foi isso: armenidade. Mais do que uma nacionalidade (porque quando meu avô nasceu, a Armênia nem existia como país), ser armênio é uma etnia. Então posso dizer que sou gay, ateu, brasileiro e armênio. E essa é a história que tenho para contar.