Livros às vezes nascem de maneira estranha. Anos atrás, lendo sobre a história do monumento ao Cristo Redentor, no Rio de janeiro, descobri, para minha surpresa, que um dos principais engenheiros da obra, Heitor Levy, era de ascendência judaica e que se convertera ao cristianismo. Aí está uma grande história, pensei, e ao longo dos anos que se seguiram, e com a ajuda do jornalista Gabriel Oliven, gaúcho residente no Rio e meu cunhado, fiz uma pesquisa sobre o tema. O enredo que eu tinha na cabeça girava, obviamente, em torno dos dilemas espirituais e emocionais do engenheiro em sua trajetória do judaísmo para o cristianismo.
Pode ser uma ideia interessante, pode ser até uma grande ideia. Mas, para minha frustração, simplesmente não decolou. Nenhuma trama brotava desse episódio real. Toda a pesquisa, várias folhas impressas, ficou na minha gaveta como testemunho de uma gorada tentativa ficcional.
Com o tempo, e para minha surpresa (grata surpresa, aliás), outra história foi surgindo, também ligada ao Cristo Redentor. Desta vez o que me motivou foram as circunstâncias históricas. A época: os anos de 1929 e 1930. Anos cruciais: a grande crise da Bolsa, a revolução de 1930, os gaúchos no poder. O Cristo é concluído e inaugurado...
1929. No interior do RS o adolescente Valdo, filho de um capataz de estância, descobre, através de um amigo mais velho, Geninho, o comunismo. Revoltado com a submissão do pai ao estancieiro, e fascinado com o que lhe parece um revolucionário projeto de mudança social, Valdo quer entrar para o Partido Comunista. Gravemente doente, Geninho recomenda-lhe que, para isso, procure, no Rio de Janeiro, o lendário líder do Partido, Astrojildo Pereira. Valdo viaja clandestinamente de trem para o Rio, hospeda-se na casa de um militante e dá inicio a uma tumultuada trajetória. Por várias razões nunca consegue encontrar Astrojildo Pereira; o tempo passa, ele precisa trabalhar, e o militante arranja-lhe emprego na construção do Cristo Redentor, o que representa para o jovem um conflito: de um lado transforma-se em um verdadeiro trabalhador, de outro está dando seu esforço para um empreendimento de natureza religiosa que sua ideologia abomina. Nesse meio tempo tem vários casos amorosos e testemunha uma época conturbada: a crise financeira de 1929, a revolução de 1930, através da qual Getúlio Vargas assume o poder. Por fim acaba voltando para o Rio Grande do Sul, casa, tem dois filhos, um dos quais, Fernando, estuda medicina e, depois do golpe de 1964, decide partir para a luta armada. Isso não acontece, e Fernando, médico, muda-se para os Estados Unidos, onde casa e tem filhos. É para um dos netos que, sob a forma de carta, o idoso Valdo conta sua história, permeada por evocações de momentos importantes da trajetória do Brasil, pelas perplexas reflexões e sobretudo pelas fantasias do jovem que ele foi.
Esta história brotou com uma facilidade que até a mim surpreendeu. A narrativa, por assim dizer, escrevia-se sozinha; tudo o que eu tinha de fazer era digitá-la com rapidez. Mas isto é explicável. Sem ser autobiográfico, o romance fala, contudo, de um projeto que animou a minha geração e aquelas que a precederam: o projeto da transformação radical do mundo, da criação de uma sociedade justa e igualitária, da solidariedade universal. Um projeto que não seria alcançado, contudo, sem luta; os donos do poder e da riqueza não aceitariam esta mudança radical, de modo que a luta de classes seria inevitável e culminaria com a batalha final de que fala o hino da Internacional Comunista e que daria a definitiva vitória ao proletariado. Este sonho foi depois deturpado, atraiçoado mesmo; o objetivo do stalinismo era, antes de tudo, o poder, mesmo que para isso fosse necessário confinar em campos de concentração e/ou assassinar milhões de pessoas. Mas o sonho em si, este permanece vivo, porque corresponde aos aspectos mais generosos da condição humana. A utopia pode ser algo impossível, mas a existência sem ela perde seu sentido. Jovem militante, também me desiludi com a revelação dos crimes de Stalin; passei, contudo, a acreditar na saúde pública (a especialidade que escolhi na medicina) e na própria literatura como formas de contribuição para um mundo melhor, sintetizado na frase que dá título ao livro: “Eu vos abraço, milhões” é uma tradução livre de um verso de Schiller que figura na Ode à alegria, o poema que serve de mote para a Nona sinfonia de Beethoven. Abraçar milhões é uma impossibilidade; mas abraçar todos aqueles que podemos abraçar faz de nosso mundo um lugar melhor. É isto que o livro busca lembrar.
O livro:
Eu vos abraço, milhões
Editora Companhia das Letras
Páginas 256
Preço R$ 39,50