Bastidores Eduardo Azeredomarco

 

Nos encontros com leitores, ou ainda em conversas com jornalistas, há sempre o momento em que se pergunta ao escritor sobre como nascem os livros. William Faulkner, na sua famosa entrevista à Paris review, contou que O som e a fúria, um dos meus livros preferidos, nasceu de uma imagem mental: os fundilhos enlameados da calcinha de uma menina, trepada numa árvore, observando o funeral da sua avó e relatando o que via para os irmãos, que permaneciam no chão, junto à árvore. Ernest Hemingway escreveu algumas de suas melhores obras a partir de suas experiências em expedições de caça. Jorge Luis Borges dizia que seus contos tinham origem em situações insólitas. Herman Melville usou um acidente trágico no oceano Atlântico, em 1820, como inspiração para seu romance Moby Dick. 

Quanto a mim, os embriões de minhas histórias são geralmente temas. E, por isso mesmo, eu costumo dizer que o processo criativo de um romance começa muito antes de nos darmos conta dele. A coisa se passa, mais ou menos, assim: de repente, noto que uma questão qualquer vem me perseguindo, é sobre ela que estou lendo com frequência, cada vez mais, é sobre essa temática que penso na cama, antes de dormir, ou logo ao acordar. Em certo momento, vejo que nem se trata mais de curiosidade: já é uma obsessão. Acqua toffana foi o resultado das minhas divagações sobre perversidade. O matador trata da banalização da violência no Brasil. Ladrão de cadáveres gira em torno das minhas reflexões sobre finitude. Valsa negra é um romance sobre o ciúme patológico.

Claro que a eleição do tema é só o começo de uma jornada, à qual vão se somar muitas outras coisas — emoções, experiências, imaginação. Amós Oz, numa deliciosa entrevista que deu à sua editora Shira Hadad, traduzida para o português por Paulo Geiger, explica, de forma poética: “Tome uma maçã. Do que é feita a maçã? Água, terra, sol, uma macieira e um pouco de adubo. É feita delas, mas não se parece com elas.” Assim é um romance.

Com Mulheres empilhadas, meu último romance, tudo se deu ainda de forma mais peculiar. No final de 2017, as editoras da Leya Brasil Leila Name e Izabel Aleixo me procuraram para propor um projeto. Deram-me toda liberdade, mas sugeriram que eu pensasse numa temática ligada à mulher, ou que inventasse uma história com protagonismo feminino.

Hoje, eu creio que foi essa sugestão que me fez aceitar o convite. Foi nossa conversa inicial que me fez pensar que há uma dicção masculina em meus romances, e que minha galeria de personagens, nos meus 11 romances anteriores, é, majoritariamente, composta por homens. Por quê? Talvez, porque eu destaque a violência da sociedade brasileira, uma violência praticada sobretudo por homens. (A violência, como já foi dito, é o primeiro componente da identidade masculina.)

Quando se olha para a mulher brasileira, o que vemos é uma realidade complexa. Somos trabalhadoras incansáveis, temos jornada dupla de trabalho, e nossa renda é mais baixa que a dos homens. Pior: pesquisas mostram que quase a metade das brasileiras em idade ativa está fora do mercado de trabalho. Somos mal pagas. Exploradas. Discriminadas. Mas o que me chamou a atenção, no Brasil, ao olhar para nossas mulheres, foi o fato de morrermos como moscas.

A cada dia, três mulheres são vítimas de feminicídio. Enquanto você lê este artigo, uma mulher foi estuprada e até você acabar a leitura, já haverá outra vítima. A média é um estupro a cada nove minutos. A maioria deles nem é reportada à polícia. E note que uma mulher registra agressão sob a Lei Maria da Penha a cada dois minutos. Esses dados colocam o Brasil no quinto lugar no ranking dos países mais violentos para a mulher. Quando comecei a pesquisar o assunto, o Brasil possuía 10 mil casos de feminicídio sem resposta do Poder Judiciário, segundo o Conselho Nacional de Justiça.

Ao me deparar com essas cifras, percebi que já tinha escolhido o tema do meu romance. O que eu sabia sobre o assunto é o que todos sabemos pela imprensa: não se passa um dia sem que uma mulher não seja morta pelo fato de ser mulher. Ao vislumbrar a dificuldade e complexidade da pesquisa, eu, juntamente com as editoras, achei por bem contratar uma jornalista experiente para nos ajudar.

Emily Sasson Cohen, que conheci por intermédio do jornalista inglês Misha Glenny, autor de Nêmesis, foi meus ouvidos e meus olhos durante o período de escritura. Posso dizer que nossa investigação foi uma das experiências mais angustiantes da minha vida. Foi como se metessem minha cabeça no caldeirão do inferno para que eu visse como ele funciona por dentro. Conversamos com advogados, delegados, juízes, especialistas, vítimas que sobreviveram, e acompanhamos diversos julgamentos. Minha sensação é que havia uma pilha de mulheres mortas na minha mesa de trabalho (e daí veio o título Mulheres empilhadas). E o que as diferenciava era o nome. E a condição social. Mas suas histórias eram sempre as mesmas: quase todas foram assassinadas pelos seus maridos, ex-maridos, amantes, namorados, ou por alguém em quem, um dia, depositaram confiança. Antes de morrer, elas foram espancadas, humilhadas, violadas e ameaçadas.

A morte é o capítulo final de uma longa história de violência; violência subletal e invisível que explode, geralmente, no dia em que essas mulheres decidem cair fora de um relacionamento abusivo. Além do fato assombroso de o patíbulo dessas mulheres ser a própria casa, local que deveria ser o seu santuário.

Um dos aspectos que mais me mobilizaram foi perceber que o feminicídio está naturalizado na nossa sociedade. Na mídia, é comum a exploração do feminicídio como forma de entretenimento. O Estado não se importa com os cadáveres de mulheres produzidos em escala quase industrial. Na verdade, o Estado, ao manter uma realidade assimétrica para os gêneros, é cúmplice nessas mortes. De certa forma, podemos dizer : esses matadores e estupradores que, muitas vezes, permanecem impunes, são os eficientes soldados do Estado machista, misógino, na função odiosa de garantir a supremacia masculina, na qual o casamento é uma espécie de licença para matar.

Uma das dificuldades do romance foi escolher o cenário para a minha história. Eu não queria fazer um retrato da mulher citadina, carioca ou paulista. Eu queria mostrar a questão do feminicídio na realidade brasileira. Ao ler uma notícia sobre o mutirão que o Judiciário vinha realizando para dar conta do excesso de julgamentos que aguardavam uma solução, notei que o Acre é o estado número um quando o assunto é feminicídio. Ali, temos a mulher da cidade, de Rio Branco e Cruzeiro do Sul, e também a indígena das aldeias, a mulher dos povos ribeirinhos, da zona rural.

O Acre, claro, me deu mais. Temos a floresta Amazônica que, como diz um ditado do Suriname, “tem respostas para perguntas que sequer ainda começamos a elaborar”. Assim, a floresta entrou no meu livro também como personagem, como uma promessa, um sopro de vida, necessário contrapeso à terrível realidade de feminicídio no país.

Mulheres empilhadas foi um livro escrito com muita indignação e ódio. Mas posso dizer que sua escrita operou em mim uma profunda transformação. Como feminista, hoje me sinto na obrigação de engajamento e ativismo na questão da educação para os direitos humanos. Porque é como uma forma de violação dos direitos humanos que toda a violência contra a mulher deve ser encarada.