Paisagem com dromedário surge a partir de duas ideias básicas. A primeira, relacionada ao enredo, se cristaliza na seguinte frase da protagonista: “É que as relações só existem assim. A três. É sempre necessário um terceiro, que, ao ser excluído, possa, através da sua ausência, a estabelecer um elo entre os outros dois.” Foi pensando nisso que eu criei a história de Érika e Alex, um casal de artistas que se relaciona com Karen, jovem aluna de Alex, que se sente atraída, fascinada pelo casal. Eu partia então da pergunta, o que acontece quando esse triângulo se desfaz? Lembro que essa ideia do triângulo surgiu ao observar uma situação bem diferente da que narro em meu livro, mas que segue a mesma dinâmica: um homem casado tem uma amante, e, ao contrário do que imaginamos, é justamente a amante o que mantém esse casamento funcionando. Enfim, me interessava essa lógica pouco romântica dos relacionamentos.
Minha outra questão era quanto à forma, uma reflexão que está presente desde o meu primeiro romance, o Toda terça. E que busca respostas para a pergunta: como contar uma história? Se todas as historias já foram contadas, o que resta ao escritor? Minha resposta tem sido sempre: restam novas formas de contar a mesma história. Eu queria trabalhar num registro que me permitisse uma dramaturgia diferente das que eu havia usado nos romances anteriores (uma espécie de modelo para armar em Toda terça e cartas, em Flores azuis). Surge então a ideia de trabalhar com gravações. Paisagem com dromedário é composto de 22 gravações. Érika, exilada numa ilha, grava para Alex registros de sua passagem por lá, pensamentos, lembranças, dúvidas etc. Me interessava um texto que se aproximasse do radioteatro, e que usasse as marcações como forma de pontuar o monólogo da personagem. Essas marcações em itálico (os ruídos do ambiente, música, fragmentos de diálogos, programas de televisão etc.) funcionam como uma segunda voz, um narrador implícito que, de certa forma, interpreta e até comenta a fala da personagem. É esse narrador, quase imperceptível, quem faz a transcrição, e ao transcrever as gravações dá a sua própria interpretação. Nada nos garante a sua integridade. Ele funciona como um filtro, que pode inclusive ter modificado as palavras originais. Ao utilizar esse recurso, meu objetivo era justamente questionar a aparente veracidade que uma gravação em geral nos transmite. Se está gravado, é por que aconteceu? Em Paisagem com dromedário, esse questionamento adquire outras nuances. Aliás, essa é uma das características do meus livros, gosto de trabalhar com formas narrativas que deixem dúvidas sobre a veracidade do que está sendo contado.
Mas ao começar a escrever o livro nada disso estava assim tão claro. Tanto que inicialmente minha ideia era escrever uma espécie de road movie. Uma história que se passasse durante uma viagem dos dois protagonistas, um casal que vai se afastando emocionalmente durante a viagem. Pensei numa história em que os cenários, a música e o rádio fossem parte importante da narrativa. Cheguei a escrever umas quarenta páginas, mas não funcionou, joguei fora. Disso restou apenas a vontade de buscar uma narrativa que se aproximasse de outras artes, do cinema, das artes plásticas, do teatro. Lembro bem quando surgiu a ideia de trabalhar com sons, de um texto que se aproximasse do radioteatro. Foi a partir de um filme de Wim Wenders, que eu havia decidido rever depois de muitos anos, Lisbon story. E há uma cena, que é citada no livro: o protagonista passeia por Lisboa gravando os sons da cidade. É a partir dessa cena que surge o meu Paisagem com dromedário. Me fascina a imagem de uma pessoa caminhando por um lugar desconhecido, porém, concentrada apenas nos sons, nos barulhos que surgem ao acaso, e na história sonora do lugar. Essa é Érika, a minha narradora. Só que eu a coloquei numa ilha. Uma ilha que nunca é nomeada, mas que existe. Tudo o que é descrito no livro sobre o lugar, existe: os dromedários, as grutas, os vulcões etc. Eu estive lá há uns dois anos. Na época, pensei: esta ilha é tão inverossímil, parece a lua, parece um lugar fantástico. Mas preferi não nomeá-la porque no livro se trata principalmente de uma ilha psíquica e era importante não situá-la geograficamente. E há também a ilha que é simbolizada pela imagem do gravador numa sala vazia. Gosto dessa imagem, uma voz num gravador, talvez uma voz que não mais exista, falando para uma sala vazia. Há uma solidão muito grande nisso.
O livro:
Paisagem com dromedário
Editora Companhia das Letras
Preço R$ 38
O triângulo à sua frente está aos pedaços
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- Categoria: Bastidores