Bastidores Filipe Aca e Hana Luzia fev20

 

É possível imaginar uma coletividade que escape ao jugo da naturalização da diferença entre os sexos? Como articular uma revolução feminista que não seja marcada pela predeterminação da categoria “mulher”? A prosa épico-poética de As guerrilheiras, de Monique Wittig, dirige-se ao horizonte utópico no qual se situam essas questões. A obra acaba de ser lançada pela primeira vez no Brasil, pela editora Ubu, em tradução nossa, cinco décadas após a publicação original pelas Éditions de Minuit.

Ao vertermos para o português esta que é a principal obra da trajetória de Wittig na ficção, refletimos sobre como no projeto confluem dimensões linguísticas, eróticas e políticas que, indissociáveis no romance, põem em marcha uma subversão da hierarquia conformada pela ordem ideológica e econômica do heteropatriarcado. Refletimos sobre modos de recuperar o projeto político e linguístico de potencial revolucionário de Wittig, deixando que ele passe, atravesse e permeie as transferências tradutórias. Um dos desafios foi exatamente o de restituir e, quando necessário, recriar as subversões na língua, permitindo que a potência da obra e seus desdobramentos conceituais jorrem pelas palavras e imagens traduzidas, sem comprometer a visualização das cenas de vida – belas, inusitadas, fortes – e dos modos de existir das guerrilheiras. Assim, buscamos conceber uma tradução que operasse no fluxo do livro, contribuindo para a perpetuação do projeto do texto, restituindo, para leitores deste lado do Atlântico, cores, perfumes, atmosfera sensual e os atos de bravura de um universo que vai se construindo em torno do “elas” e que caminha para um mundo no qual a divisão binária dos sexos pode ser superada.

Wittig, nascida em 13 de julho de 1935, na comuna de Dannemarie, no departamento do Alto Reno, Alsácia, mudou-se para Paris, onde estudou Literatura, Filosofia e História na Sorbonne. A escritora participou intensamente do movimento de estudantes e trabalhadores de maio de 1968, tendo integrado o grupo Féministes révolutionnaires e participado das ações iniciais do Movimento de Libertação das Mulheres (MLF). Radicou-se nos Estados Unidos a partir de 1976, ao lado da atriz e diretora Sande Zweig, sua parceira. Em 1978, no encontro da Modern language association, deixou a plateia em polvorosa ao afirmar que “as lésbicas não são mulheres”, tese segundo a qual as lésbicas escapariam dos sistemas de pensamento e economia heterossexuais, bem como da categoria heteronormativa do “sexo”. Em outras palavras, o espaço da subjetividade lésbica seria um espaço de liberdade. A apresentação foi posteriormente publicada com o ensaio The straight mind, um dos mais conhecidos de Wittig. Além de As guerrilheiras e The straight mind, destacam-se, entre seus escritos de maior repercussão, os romances L’Opoponax (vencedor do Prêmio Médicis de 1964) e Le corps lesbien (de 1973, a ser publicado no Brasil pela editora A Bolha, em tradução de Daniel Lühmann), a peça de teatro Le voyage sans fin (1985) e o ensaio One is not born a woman (1980). Wittig se tornou professora de Francês e Estudos das Mulheres na Universidade do Arizona, em Tucson, onde viveu e trabalhou até seu falecimento, em 2003.

As guerrilheiras imaginadas por Wittig são alistadas pelo propósito mais amplo de desestabilizar o universal fálico de uma perspectiva irredutível a uma sexualização a priori, dada a opressão exercida pelo binarismo masculino-feminino e a subordinação física e social das mulheres aos homens. Tal subordinação se encontra encarnada na língua: “A língua que você fala é feita de palavras que matam você”, diz a narrativa. “A língua que você fala envenena a glote a língua o palato os lábios”. Caberá às guerrilheiras instaurar uma realidade em que não serão escravizadas pelo conceito de poder, já que não se trata de deslocá-lo das mãos dos homens para conceder às mulheres o predicado de dominadoras. Não se trata, tampouco, de transformar a mulher em “prisioneira da própria ideologia”, de fazer da vulva objeto de culto, nem de fundar uma nova essência “feminina”. Trata-se, antes, de destituir a própria lógica da dominação – “Recuso-me a pronunciar as palavras de posse e de não posse”, afirmam as guerrilheiras. “Se eu me apoderar do mundo, que seja para me desapoderar dele imediatamente”.

Nos fragmentos imagéticos que compõem essa epopeia feminista, percebemos uma espécie de sociedade em pleno funcionamento; uma sociedade centrada nas guerrilheiras, que operam num fluxo contínuo de enunciações e ações. Elas dizem, questionam, refazem e revisitam os lugares comuns dos discursos feministas; elas agem, encenam, no sentido de que põem em cena momentos, ritos e práticas de uma vida coletiva que vai se desenhando no livro. Como leitoras e leitores, somos instalados na posição de observadores e, por que não, de copartícipes das cenas de vida das guerrilheiras, imbuídas de uma sinestesia e uma dimensão imagética que nos permitem entrar, com a sensibilidade e o intelecto, nos movimentos de guerra, mas também nas danças, nos jogos e no estilo libertário dessas guerreiras. Os nomes das guerrilheiras, recitados em meio a essa sociedade revolucionária em pleno funcionamento, criam um espaço de empatia e convidam o(a) leitor(a) a mergulhar de cabeça nesses outros modos de existência. Nessa obra ficcional, o projeto utópico de Monique Wittig pode ser apreendido de vários modos; ele é não apenas lido, mas também sentido, mostrado.

Esse projeto utópico é elucidado no ensaio The trojan horse, de 1984, também inédito em português, no qual Wittig aborda a literatura como “máquina de guerra” capaz de infiltrar usos linguísticos e formas de pensamento convencionais e subvertê-los gradualmente. A filósofa estadunidense Judith Butler, ao considerar as táticas político-literárias wittigianas, em Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, chamará atenção justamente para a estratégia básica da qual a autora de As guerrilheiras lança mão: uma apropriação da “posição de sujeito falante e de sua invocação do ponto de vista universal”. Tal qual “cavalo de Troia”, metáfora convocada por Wittig para descrever essa operação de apropriação e destituição, uma obra literária tem por objetivo “pulverizar antigas formas e convenções formais” – como uma mina terrestre capaz de, mais cedo ou mais tarde, explodir o solo em que está plantada. O experimentalismo da prosa e a subversão das formas tradicionais da linguagem abrem espaço para a concretização de sua utopia para além do gênero. Tudo está por fazer, tudo pode ser retomado do zero. Passado, presente e futuro se recriam no espaço profícuo do campo literário em diálogo com o real, mas também multiplicando suas possibilidades – a experimentação política encontra terreno fértil na literatura.