Bastidores Eduardo Azeredo dezembro19

 


Em outubro de 2013, bem longe do Rio de Janeiro, começou a nascer este meu último livro de poemas, Onde estão as bombas. Embora já houvesse a escrita de meu segundo livro, Aceno, em processo, intuía que o que acontecia coletivamente em termos nacionais pudesse reverberar subjetivamente. Depois também de uma quase-morte, depois de emagrecer quase um terço do meu corpo por conta do adoecimento, depois do assassinato de Cláudia Silva Ferreira pela PMERJ, depois das manifestações feministas contra os retrocessos propostos pelo Legislativo nacional no ano de 2015 em relação à uma criminalização mais insidiosa contra mulheres no caso de um aborto, depois da deposição golpista e misógina de Dilma Rousseff, depois que os ratos saíram de seus bueiros, depois da prisão de Lula, depois da execução de Marielle Franco, depois das eleições de 2018, depois de tudo isso atormentava uma pergunta que era – como haverá depois? 

Enquanto a distopia se confirmava e a resposta para a questão vinha sendo melancolicamente construída, surgia um desejo de saúde, um desejo de organizar, pensar, estudar, discutir, uma espécie de gênese da violência naquilo que me era uma imagem, uma possibilidade de país que ia evanescendo. Fui então dando conta de que, na minha própria genealogia (o poema Origem, que abre o livro e na sua simplicidade aponta para a retirada do poder, da força e da vida pela morte procura ilustrar essa perda inaugural), a violência estava lá, se constituindo, me formando, educando medos e inseguranças. Nesse sentido, lembro um texto do professor Márcio Selligman-Silva, A história como trauma, em que, apesar de não tratar exatamente de Brasil, haja nele uma longa reflexão sobre as (im)possibilidades de representação da Shoah. E fui então pensando em nós, nos outros que estão fora da zona de figuração e representacionalidade, tentando compreender as raízes e os modos de manutenção da política de genocídio dos povos originários e do negrocídio costumeiro nas periferias imensas deste país formado por graves disparidades e abismos.

Não posso dizer que Onde estão as bombas tenha se esgotado do ponto de vista temático – tenho a sensação de que ainda não terminei de escrevê-lo –, porque temos um tempo terrível pela frente, não só do ponto de vista político, mas sobretudo do ponto de vista dos efeitos da precarização da vida e dos compartilhamentos diversos das formas variadas de miséria na lógica sinistra que rege a economia do neoliberalismo. Desse modo, entendo que meu livro seja apenas uma ínfima contribuição no mar profundamente violentado pela concretude e pela metáfora do óleo devastando a vida no nosso litoral. O livro é uma respiração minha compartilhada, tem a ver com a anotação de um possível dentro dos dias de lama, fogo, tortura e medo, muito medo. E sei que compreendê-lo como um movimento limitado, um pequeno gesto enquanto tudo tende a uma petrificação é necessário para evitarmos a captura do/pelo real, mas também entendo que escrever poesia, ter a palavra, possuir leitores, amigos que têm insistido e acreditado na escrita e lugares de diálogo seja um privilégio neste momento. Talvez por isso também a minha linguagem poética tenha se reorientado. Porque não quero falar apenas na distância dos sujeitos poéticos, estou implicada na (minha) poesia há muito tempo para acreditar que ela precise de guardiões de uma única tradição. Quero propor o número três e seus múltiplos. Quero que meus alunos e os futuros alunos deles nas escolas públicas espalhadas pelo Brasil possam se aproximar da linguagem poética. Como um dia foi possível para mim, lendo sentada no meio-fio da Rua Tamiarana, em Higienópolis, na zona norte do Rio, A bolsa amarela, de Lygia Bojunga Nunes, quero partilhar o assombro e o espanto como quem entende o tamanho de ser finito. Quero que meus alunos saibam que não é possível mais falar de literatura brasileira sem a leitura do Diário de Bitita, quero que meus alunos de literatura portuguesa saibam ler a contrapelo Os Lusíadas, porque para mim a aposta nos que virão pode ser também um modo de ter alguma esperança.

Acredito que Onde estão as bombas seja obra de algum possível numa época brutal. Acho que a violência, a ira estão lá na raiz da nossa formação nacional, na estrutura discursiva e racista do colonialismo, naquilo que a Grada Kilomba lembra de existir no Brasil, as entradas e os elevadores de serviço, por exemplo, que alguns brasileiros somos convidados a conhecer mais que outros. Também estão lá nos versos iniciais da Ilíada, mas com uma diferença: provavelmente outras culturas tenham operado simbolicamente sobre suas pulsões destrutivas. A questão da força dessa destruição, no Brasil, é a sua (de)negação. E as instituições nas quais a literatura se inscreve foram, por muito tempo, responsáveis pela continuidade dessa negação. Nesse sentido, as universidades públicas têm sido um celeiro importante para a manutenção de um espírito democrático que pense a literatura, e a poesia, claro, como também crítica da cultura. Com isso, não se trata de pautar a compreensão ou o fazer da poesia a partir apenas do identitarismo, mas de apontá-lo ou comentá-lo como “motiva-dor” dos processos estéticos da linguagem de muitos artistas e muita gente cuja história foi ou está guardada sob o silêncio da invisibilidade. Acho que Onde estão as bombas é também sobre isso. Sobre conhecer o convite imperativo das entradas de serviços, das vidas nos cortiços, do saber da “carne tão azarada das mulheres” e das pessoas LGBTQI+. Com efeito, é sobre possibilidades de sobrevivência a partir de um verso de migração da paisagem: “o que é forte é o que me foi pesado”. Onde estão as bombas, assim, não é um livro sobre os meus sentimentos, ao contrário do que li em algum lugar. É um livro sobre corpos ameaçados que querem alguma restituição, algum direito de assinar o próprio nome e dizer – eu também existo, também faço poesia e também vim ocupar este lugar.