Bastidores Hana Luzia e Filipe Aca set19

 

Publiquei neste ano o livro Queer in the tropics: gender and sexuality in the global south (editora Springer) [nota 1], fruto de mais de duas décadas de pesquisas, encontros e envolvimentos. O percurso se inicia no final dos anos 1990 e vai até o contexto da pressão que setores conservadores vêm exercendo contra as conquistas no campo de gênero e sexualidade. O itinerário não foi controlado nem seguro e fui levado pelas experiências a lugares que não imaginava quando havia começado a jornada.

Era final dos anos 1990. Eu estava concluindo o trabalho de campo numa ONG para portadores de HIV em Brasília. A ONG abrigava pobres urbanos, excluídos, vidas precárias que formavam uma das paisagens originadas da relação estreita da extrema desigualdade socioeconômica do país e a epidemia de aids. Havia ali uma parcela significativa das minorias sexuais, como gays, lésbicas, travestis, bissexuais, de alguma forma lidando com a epidemia HIV/aids. Acabei me envolvendo intensamente com essa pesquisa e a experiência me levou a continuar pensando nos dilemas da saúde pública no Brasil. No que se seguiu, voltei-me, agora em São Paulo, para questões como itinerários terapêuticos de portadores de aids; a adesão aos antirretrovirais; violência contra mulheres.

Em 2011, depois de mais de uma década de conclusão da minha etnografia, passei a orientar uma doutoranda, Martha Souza, que fazia pesquisas sobre itinerários das travestis em Santa Maria (RS). Martha não tardou em perceber um vazio no que se refere à assistência, assinalando inadequação ou dificuldades dos serviços para cuidar das travestis. Entretanto, encontrou formas de cuidado e de acolhida para ela inesperadas: a maioria das travestis frequentava casas de santo e estava ligada, de formas e intensidades diferentes, às religiões afro-brasileiras.

No desenvolvimento da pesquisa em Santa Maria, lembrei que essas questões surgiram para mim bem antes, no decorrer de minha etnografia em Brasília – momento em que tive o primeiro contato com as poéticas das travestis nas religiões afro-brasileiras. Ao refletir sobre o tema, revisitei anotações, caderno de campo, entrevistas, fotos e, remexendo a memória, reencontrei personagens que me acompanharam durante a etnografia, para só depois de 10 anos conseguir escutar mais densamente o que me haviam me falado naquela época.

Seja na periferia de Brasília, nas casas de santo de Santa Maria ou nas atuais pesquisas que venho desenvolvendo na cidade de São Paulo sobre corpo e saúde, deparei-me com as histórias e formulações das travestis, com suas performances e reconstruções corporais. Aprendi que a invenção dos corpos pressupõe a sua reinvenção contínua. Fui seduzido por essas reinvenções, pela intensidade de meus interlocutores e interlocutoras e por suas conformações e multiplicidades. Essa experiência me moveu para além do que eu poderia imaginar, a ponto de Judith Butler afirmar, no prefácio que escreveu para Queer in the tropics, que nesses encontros o etnógrafo “cede o controle, sucumbe ao pesar, considera o voo, mas continua o acompanhamento”. As experiências afetam e provocam o “ceder o controle” – a narrativa então revela as mudanças e as marcas indeléveis dos afetos.

Afetado pelas poéticas das travestis sobre corporalidades e incorporações (com suas construções corporais, com suas formas de cuidado e suas concepções de saúde), pude me aproximar de suas filosofias, com as quais interpretam o mundo e suas próprias transformações corporais. Esse movimento colocou-me a necessidade de abertura às teorias que formulavam e de ter que me perguntar: como esses itinerários teórico-políticos interpelam as teorias que estamos habituados a manejar nas universidades? Vou sugerindo que a questão não é uma simples crítica às teorias da Europa ou dos Estados Unidos. O problema é tomar essas teorias como simplesmente “aplicáveis” a outras realidades. E a grande provocação é valer-se de seus conceitos, mas subvertendo-os, a partir das histórias partilhadas/entrelaçadas originadas no contexto (pós) colonial. O esforço se direcionaria para alterar os conceitos, transformá-los de forma que possam abarcar mais, inverter e modificar os conceitos, transformando-os de tal forma e intensidade, para que produzam algo novo. E assim: experimentar outros conceitos e experimentar-nos com outros conceitos.

Todo esse percurso me permitiu perceber que as travestis criam sofisticadas formas de agências para lidar com a exclusão desse poder que estabelece as categorias daquilo que pode entrar no mundo dos possíveis e que coloca seus corpos e subjetividades como impensáveis. Com o tempo, pude notar que essas formas de agências – as mobilizações dos corpos dissidentes em aliança – construíram novos caminhos que podem ser observados em conquistas, tais como: em agosto de 2008, o Ministério da Saúde implantou o processo transexualizador no SUS, a ser empreendido em serviços de referência e habilitados; em 2010 sai a versão final divulgada do documento Política Nacional de Saúde Integral de LGBT.

Mas, apesar dessas conquistas, o contexto que estamos vivendo hoje é ameaçador (como tive oportunidade de analisar com Richard Miskolci, em debate recente) [nota 3]. Se, quando ainda estava em campo no final da década de 1990, lutávamos pela consolidação da democracia e pela construção do SUS, buscando caminhos para igualdade social, já em 2019, ao lançar Queer in the tropics, para continuar construindo o SUS temos que lidar com um quadro de desmonte do Estado, no qual os direitos sexuais e reprodutivos se tornaram um dos principais eixos de disputa de políticas públicas educacionais e de saúde. O avanço de grupos conservadores vem se manifestando pela busca de esfacelamento do sistema de saúde e contra as propostas de políticas públicas igualitárias e inclusivas como preconizam as diretrizes do SUS.

Quiçá essa jornada que descrevi rapidamente aqui possa nos ajudar a perceber que, neste momento em que as conquistas que tivemos estão sob ameaça, podemos nos inspirar nas formas inauditas de agência como as que aprendi com os corpos dissidentes nessas duas últimas décadas. Quem sabe possamos construir conversas coletivas, estar em companhia, até que, como salientou Butler no mencionado prefácio, “quem somos não seja pensável além dessa companhia”. Afinal, pelo menos por essas paragens de cá, só em companhia conseguiremos enfrentar as ações que submetem determinados corpos à violência e ao extermínio.

NOTAS

[nota 1] O sumário do livro e os dois prefácios (assinados por Richard Miskolci e Judith Butler) estão disponíveis em inglês aqui.  

[nota 2] A íntegra do prefácio de Butler em português está disponível aqui

[nota 3] Debate disponível aqui.