Assisti novamente a Citizenfour, documentário de Laura Poitras vencedor do Oscar. O filme acompanha Edward Snowden vindo a público explicar a vigilância que a Agência de Segurança Nacional (NSA) detinha sobre a população dos EUA e de outros países. Em 2014, a partir da entrega de provas aos jornalistas Ewen MacAskill e Glenn Greenwald, o escândalo veio à tona: a NSA monitorava a posição de milhões de celulares ao redor do mundo.
Se a magnitude da vigilância causou indignação, agora, cinco anos depois, possui um gosto diferente. Parece que temos certeza de que nossas mensagens mais íntimas estão sendo gravadas por alguma agência de inteligência. Inclusive, parece que nem nos importamos mais, reparou? Quinze anos após a estreia do Orkut, vazamos nossa própria intimidade em rios de stories e selfies. A rendição a um olhar onipresente numa autodefesa dúbia.
Diante desse cenário, o que poderia ser ainda mais invasivo?
Meu livro A telepatia são os outros nasce dessa extrapolação. Imaginar uma forma de contato ainda mais avassaladora. Se hoje encontramos mecanismos para editar algo de nossa intimidade, na minha noção de telepatia isso não seria mais possível: ao se conectar, uma pessoa emitiria, inevitavelmente, traumas, pensamentos desagradáveis, comentários cruéis.
Dessa forma, para se conectar é necessário passar antes pela vergonha. A vergonha absoluta da exposição sincera. Minhas personagens passam por essa nudez mental. Por exemplo, Paco admite sofrer por uma rejeição amorosa e Lucía não consegue impedir que cenas de um feminicídio venham à tona. Jorge vomita e nem consegue se conectar. Sabendo de tudo isso, você provaria dessa água?
UMA FICÇÃO CIENTÍFICA RUMO AO SUL
A tecnologia-chave explorada no livro possui base tradicional: uma bebida fermentada. A receita seria guardada como segredo por gerações, possuindo uma provável origem indígena. No interior do Chile, as personagens travam contato com a bebida em uma escola agroecológica imaginária localizada em “um rincão perdido da província de Ñuble”.
Assim, ao escrever ficção científica aqui do hemisfério sul, tento mostrar a tensão no próprio conceito do que seja tecnologia e suas apropriações. A trama passa-se no Chile, frisando um Brasil latino-americano. A protagonista, Irene, brasileira, sofre com o espanhol, mas a turista desavisada amadurece, insere-se. Há muito ainda para se conhecer nesses rincões.
Nas referências, devo os terremotos a N. K. Jemisin e as alucinações a Alfred Bester, Philip K. Dick e William Gibson. Devo muito à poesia chilena — do Nobel da Gabriela Mistral aos antipoemas do Nicanor Parra, passando pelo Canto a seu amor desaparecido, do Raúl Zurita. E se há algo jodorowskyano, bem, não pude evitar.
DA REVISTA SERIADA AO LIVRO, DA MAFAGAFO À MONOMITO
Na história da ficção científica, revistas possuem seu papel. Narrativas publicadas de forma seriada transformaram-se depois em livros: Eu, Robô, de Isaac Asimov (1950), por exemplo, teve contos publicados antes na Astounding Science Fiction; um conto de Arthur C. Clarke, Encontro no amanhecer (1953), publicado na Amazing stories, dará depois base à narrativa do clássico 2001: Uma odisseia no espaço. Algo semelhante ocorre na literatura brasileira: um livro que adoro, Memórias de um sargento de milícias, foi antes publicado no Correio mercantil do Rio de Janeiro.
Uma das sortes de A telepatia são os outros foi ter passado pelo cuidadoso processo de publicação na revista Mafagafo um ano antes. Publicar na Mafagafo foi uma aula, pois o texto passou por várias leituras e comentários (obrigada, Jana Bianchi, editora-chefe da revista; George Amaral e Nessa Guedes mais uma vez). Na primeira versão, o texto era bem diferente — protagonista jovem, extensão menor e dividido em quatro atos, pois cada parte seria lançada avulsa.
Aos poucos, fui recebendo comentários favoráveis. Tomei coragem e fiz o convite ao Toni Moraes da editora Monomito: e se a gente pegasse essa noveleta e transformasse num livro? Deu certo. A editora lançou a coleção Universo insólito e meu livro é seu primeiro volume. Logo, a coleção contará com títulos da argentina Teresa de Echeverría e da afrofuturista brasileira Lu Ain-Zaila.
Na atual versão, o essencial foi envelhecer a protagonista. Reparei que a literatura brasileira dá pouco destaque às mulheres mais velhas. Assim, surge Irene aos 50 anos. Sem pedir para entrar numa aventura, Irene é colocada no epicentro de uma história maluca. Inseri questões espinhosas sobre raça e gênero que julgava necessárias e, assim, contratei duas pessoas em quem confio para a leitura sensível do original: Uva Costriuba, para captar meus machismo e homofobia, e Viviane Nogueira, para meus preconceitos raciais. Não queria abrir mão de trabalhar com pessoas menos representadas na literatura e queria empenhar o máximo de cuidado.
Não sei se acerto. Mas confio na tentativa. É igual se comunicar por telepatia: a certeza é a nudez mental, você vai conseguir ler meus erros projetados em telas gigantes, minhas deformações culturais. A vergonha absoluta da exposição sincera. Mas o risco é quem engendra o voo. É bom provar dessa água.
* Agradeço a Lilian Aquino, Mariana Correia Santos e Toni Moraes pela primeira leitura deste texto.