As ideias me ocorrem de repente, sem aviso prévio. Em geral são trechos avulsos que não chegam a formar uma história. Ou então são tramas quase completas, faltando algum parafuso, um elo fundamental. Nessas horas fico ansioso, obcecado atrás da solução. Um dia finalmente vem o lampejo, mas com a provável ressalva de ser o lampejo de outra história, totalmente diferente, às vezes também incompleta. Sou um colecionador de ideias incompletas, que vão sendo anotadas num caderno para futuras necessidades. Mas esse acervo deve ser usado com cuidado, sem encaixes forçados ou soluções artificiais. Enredos com muitos detalhes e artimanhas lembram aquelas mulheres maquiadas demais ou os pratos incrementados dos restaurantes. Coisas boas são simples. Um cozinheiro me explicou que os peixes mais frescos são usados nos pratos básicos, enquanto cremes e temperos disfarçam o sabor dos outros. Assim são as melhores histórias: definem-se em poucas palavras.

Costumo dizer que a escuridão do escritor é branca. Preencher páginas em branco é como abrir uma picada na selva. Há perigos nem sempre evidentes como repetições, excessos ou impertinências. Então é preciso refazer o caminho ou parar tudo, sem medo de começar de novo. Revisar também pode ser uma tarefa cruel porque ótimas ideias podem não funcionar, feito joias descombinadas com a roupa ou a ocasião. Certa vez eu não sabia o que fazer com um personagem adorável. Tentei aproveitá-lo à exaustão, mas não deu. Foi-se embora. Outro exemplo: no romance Traduzindo Hannah, uma pitoresca viagem para a Amazônia, alvo de muita pesquisa, foi deletada a sangue frio porque sua função na história podia ser cumprida de outro modo, bem mais simples e eficiente. Vivo questionando a função de cada fato, personagem, elemento, tentando poupar o leitor de esforços desnecessários.

Alguém poderá me tachar de pragmático. Sou, sim, mas também admito alguns luxos em nome do estilo e da reflexão. Adoro mesclar a narrativa com devaneios que beiram a poesia, recorrendo a palavras nem tão coloquiais para refinar certas frases. A síntese é minha meta permanente, talvez porque eu goste de roteiros de cinema. Filmes devem ser rápidos e claros na mensagem, o que não é obrigatório na literatura. Busco o meio-termo, sem as limitações e urgências da linguagem audiovisual, mas sempre afeito à imagem, enxergando cada cena antes de escrevê-la. Até trilhas sonoras já andei inventando. Minha matriz criativa é “imagética”, como diriam os cineastas.

Admiro o bom estilo, capaz de enriquecer e até sustentar histórias. É o caso dos contos O monstro ou O violoncelista Porto, de Josué Montello. Mario Vargas Llosa também dá um show com Tia Júlia e o escrevinhador, abusando da ironia. Procuro embelezar cada frase porque obras de ficção são mentirosas e as mentiras, ao contrário das verdades, têm de ser sedutoras. É a velha tática dos prescindíveis: agradar para não ser descartado. Mas... agradar como? Aí mora o perigo, pois o texto lúdico não tem os parâmetros da escrita funcional. O céu é um limite implacável quando se busca um teto.

Posso levar semanas reescrevendo uma página até achar “o ponto certo”. Ano passado, gastei boa parte de um sábado detido na descrição de uma tarde chuvosa. Lá pelas tantas, peguei o guarda-chuva e saí para almoçar. O vizinho ficou chocado: era um dia ensolarado. Dá nisso conviver com personagens, cenários, ambientes mais palpáveis (e convidativos) do que a própria realidade. E as divagações? Não acabam nunca, para a agonia daquilo e daqueles que pedem sua atenção.

Conforme um livro avança, sua liberdade criativa tende a diminuir. Chega o dia em que os personagens se rebelam contra suas ordens e invocam a página 17 ou o capítulo 4. Afinal, eles já têm passado, princípios e vontades. Então você negocia, busca alternativas. Ou, simplesmente, muda a página 17 e o capítulo 4, o que requer extremo cuidado porque, num romance, tudo se comunica e é preciso conferir as repercussões (nem sempre triviais) da mudança.

Terminado o “primeiro tratamento”, vêm as revisões e algumas surpresas. Escrever um romance pode levar anos, sendo natural que o autor viva suas “fases”. Por exemplo, a fase dos diálogos cortantes, dos adjetivos, das frases curtas ou até de determinadas palavras. Certo dia, descobri que a palavra “virtualmente” aparecia quatro vezes num único capítulo, para nunca mais dar as caras. Também já encontrei a mesmíssima frase em páginas diferentes. Aí vem a missão de harmonizar o texto, de evitar modismos, redundâncias e discrepâncias antes que o livro vire uma colcha de retalhos.

Criar e escrever são ofícios que demandam solidão e um tempo interior destoante do tempo cronológico. Gasta-se um dia inteiro às voltas com um verbo ou com um impasse qualquer. Três horas passam em três minutos. É preciso ter papel e caneta à mão, porque o lampejo costuma acontecer nas horas impróprias. E lampejos não faltam quando se está, digamos, na página 180 de um romance. Mesmo aquilo que se pensava concluído pode desmoronar. Basta uma ideia melhor e um tantinho de coragem para mudar tudo (ou quase tudo, o que dá no mesmo).

Concluir a história também é desafiador. Não só em termos criativos, mas porque é difícil emancipar os personagens, perder sua afável companhia e deixar o ambiente onde você se sentia tão confortável. É como mudar de casa, de emprego, de amigos, de amor. Um exílio forçado. Fica uma saudade aflita e a vontade de rever, melhorar, rematar. Mas é preciso largar o osso, arrumar a trouxa e botar o pé na estrada atrás de outra história, porque aquela já não lhe pertence.


Ronaldo Wrobel é autor de Propósitos do acaso e Nossas festas. O romance Traduzindo Hannah será lançado durante a Fliporto 2010.