Comecei a escrever meu terceiro romance, Cloro, em 2014, quando me mudei para São Paulo depois de alguns anos vivendo em Tóquio.
Fazia tempo que eu queria escrever sobre autocontrole. Acho que o livro – cuja publicação pela Companhia das Letras está prevista para este mês – é uma tentativa nesse sentido. Nele, conto a história de Constantino Curtis, um homem de 50 anos que morreu faz 10 horas em condições vexatórias. Constantino é um homossexual reprimido que se casou com a namorada de adolescência. É pai de dois filhos adultos e leva uma vida bem-estabelecida em São Paulo. Depois de uma tragédia familiar inesperada, é confrontado com sua homossexualidade, passa a levar uma vida dupla e apaixona-se por outro homem.
A história é contada em duas partes. Na primeira, intitulada “Eu”, Constantino narra a um interlocutor imaginário episódios definidores de sua vida – da infância até a morte – enquanto espera no limbo, o que lhe caberá no pós-morte, Na segunda, intitulada “Os outros”, sete amigos e familiares de Constantino comentam sobre a relação que tiveram com ele e a reação que tiveram diante da notícia de sua morte. O livro tem 31 capítulos curtos e um epílogo; 150 páginas no total.
Em relação aos meus livros anteriores (Matias na cidade e Sergio Y. vai à América), Cloro tem pelo menos três peculiaridades importantes.
A primeira é que, dos meus três livros, ele é o único inteiramente escrito no Brasil. Os anteriores foram sempre escritos enquanto eu vivia no exterior, trabalhando como diplomata, tendo de me dividir entre a literatura e o Itamaraty, quase sem tempo para escrever. Além disso, esses livros nasceram e se desenvolveram cercados por línguas estrangeiras. Serviam, muitas vezes, como meu refúgio linguístico numa realidade dominada por idiomas estranhos (espanhol e inglês no caso de Matias; japonês no caso de Sergio Y.)
Cloro, ao contrário, foi escrito no Brasil. Eu tinha entrado em uma longa licença sem vencimentos do serviço público e, além de uma coluna semanal para a Folha de S.Paulo, o livro era minha única responsabilidade. Foi a primeira vez que escrevi sem constrangimentos de tempo.
Além disso, foi escrito comigo ouvindo português na rua, o tempo todo. Para mim, isso fez diferença em como o livro soa. Em comparação com meus outros dois, Cloro tem um ritmo mais fluido, com frases mais longas. Acho que soa mais coloquial.
A segunda peculiaridade do livro é que se trata de meu trabalho mais autobiográfico. Nunca havia escrito sobre um homem homossexual reprimido – coisa que eu, por quase três décadas, fui. Contar essa história me obrigou a revisitar várias experiências intensas de minha infância, por exemplo. Experimentei um desgaste emocional que não tinha enfrentado nos meus livros anteriores. Constantino e eu nascemos no mesmo ano. Ele era uma pessoa que eu poderia ter sido, mas não fui.
No entanto, todos os personagens do romance têm elementos autobiográficos meus nem sempre agradáveis de encarar. Muitas vezes, enquanto escrevia, era como se eu incorporasse o personagem e, depois de compor uma passagem, me sentia tão exaurido que tinha de tirar uma soneca para me recuperar.
A terceira peculiaridade do Cloro em relação aos meus outros livros foi seu processo de edição.
Como escritor, gosto de desenvolver uma relação próxima com o editor. Meu processo criativo precisa e se beneficia muito de que se estabeleça uma relação de troca e cumplicidade. Tenho de ficar amigo, “cruzar o santo”. Do contrário, não funciona para mim.
Por contingências do destino, Cloro foi editado por três pessoas diferentes. Ou seja, tive de estabelecer essa relação íntima três vezes, de formas distintas. Podia ter dado errado, mas deu certo.
Embora essas mudanças tenham tornado o processo editorial mais trabalhoso para mim, porque tive que desenvolver três diálogos diferentes sobre o livro, o resultado é um texto depurado por três visões editoriais distintas, que acabaram se tornando complementares. Cloro se beneficiou disso.
Mas, apesar de ter sido escrito sem constrangimentos de tempo, de falar de experiências que eu conhecia e de contar com a ajuda de três grandes editores, Cloro foi o livro meu livro mais árduo, mais sofrido, o que demorou mais para sair.
É também o de que eu gosto mais, porque foi o que mais me desafiou como escritor. Acho que Cloro me tornou um autor melhor. Começou como um conto curto. Teve várias fases e passou por diversas concepções. Exigiu de mim um esforço de sinceridade total sobre questões que eu não sabia se estaria disposto ou preparado para enfrentar.
Contei muito com a ajuda do Leandro Sarmatz para identificar essas questões inescapáveis, e com a da Rita Mattar para ajudar a estruturá-las. A Luara França pegou o processo no final, mas foi instrumental para dar um sentido ao todo.
Mal comparando, foi como passar para uma nova fase do video game, com desafios assustadores para mim. Acho que sobrevivi. Continuarei jogando. Seguirei em frente.
>> Alexandre Vidal Porto, escritor e diplomata, é autor de Sergio Y. vai à América