Agora que acaba de sair a 4ª edição de Devassos no paraíso, muita gente ainda me pergunta por que lhe dei esse nome, ao abordar práticas sexuais dissidentes no Brasil, desde a colônia até os dias de hoje. Durante as pesquisas iniciais, eu me deparei com essa expressão num livrinho sobre viajantes estrangeiros no Brasil, cujo autor de cunho conservador e tom indignado tachava os índios no período colonial de “devassos no paraíso”. Segundo ele, essa seria a percepção dos colonizadores e missionários cristãos ao se espantarem com a falta de pudor dos “gentios”. Não apenas o fato de homens e mulheres andarem nus, mas sobretudo suas práticas sexuais – inclusive entre homens – na contramãos das severas restrições do cristianismo europeu. Tomados de escândalo, teriam juntado num paradoxo esses dois componentes inconciliáveis: a devassidão da carne e o pleno paraíso – no caso, terrestre. Ao me apropriar e ressignificar essa expressão, entrevi nela um aspecto irônico (ou mesmo transgressor) que poderia ser aplicado a qualquer população que divergisse da norma heterossexual, como no caso de LGBTs. O nome me parece adequado ainda hoje: o tal escândalo continua ativado no entorno social e moral desses “desviantes sexuais”. Do mesmo modo, mantém-se atual o paradoxo que ainda escandaliza quem se pauta pela heteronormatividade e classifica as dissidências como desregramentos da ordem moral que lhes parece natural, apesar de imposta e mantida a todo custo. Persistem as calúnias, a perseguição e a violência. Assim o comprovam os sermões condenatórios de muitos líderes religiosos e também as estatísticas de ataques e assassinatos cotidianos de pessoas LGBTs.
Antes de tudo, duas perguntas se impõem sobre o que seria devassidão e o que seria paraíso, como componentes do “paradoxo moral” apontado. As respostas não podem prescindir do sentido irônico aí implicado. O paraíso é uma quimera criada pelo imaginário para barrar sua angústia perante a morte, ou seja, o Nada que se segue à vida e a contamina retroativamente. Nesse caso, haveria uma salvação totalmente atualizada, eternizando a esperança e, consequentemente, a fé que a pressupõe. No entanto, o sonho do paraíso – que eu chamei de quimera – precisa se manter enquanto utopia para que a esperança e a fé persistam. Se existisse o paraíso real não seria necessária a esperança, que mantêm viva a fé. Afinal, seriam ambas dispensáveis se a eternidade existisse na perfeição paradisíaca. Em resumo, convém manter viva a quimera, até o ponto de instilar a crença paradisíaca no tecido mesmo da experiência humana, vertida em mitologias religiosas ou não.
Se não existe o paraíso, tampouco existe a devassidão como conceito fechado em si: ele nasce e se desdobra carregado de significados morais, frequentemente condenatórios. O Marquês de Sade era devasso sem questionamentos. Utilizava sua obra literária mais para embasar a crítica à moral e à sociedade do que para tentar se pautar por ela. Um autêntico devasso como Sade não perderia tempo em se definir – e, por extensão, definir a sua “devassidão” para determinar o que é permitido ou não. Mas, também aqui, há uma quimera impressa nessa “totalidade” que a devassidão pressupõe. Afinal, a atualização absoluta da devassidão seria a morte.
O que de fato se pode acompanhar em Devassos no paraíso é a trajetória histórica do desejo à margem tal como tem vicejado no Brasil. Ou seja, está se falando daquele tipo de desejo renegado e escondido. Não por acaso, ao se referir a ele nossa língua criou os mais diversos vocábulos pejorativos, que habitam o dia a dia, sempre que se quer ofender ou menosprezar alguém. Para atravessar o obscuro território das margens do desejo foi preciso meter a mão na massa daquela sombra que habita a alma brasileira. Estrangeiros, que por aqui experienciaram a prática homossexual em suas mais diversas dimensões, deixaram testemunhos eloquentes dessa sombra. Basta lembrar Tulio Carella, em solo pernambucano, que parecia viver eroticamente enfeitiçado pelos negros. Ou evocar Roger Casement (novidade nesta 4ª edição) que percorreu o território brasileiro anotando dimensões precisas do órgão genital de seus jovens parceiros. Tanto num caso como no outro a sombra nacional casou-se com os demônios interiores desses personagens e decretou seus destinos trágicos. Carella foi torturado e expulso do Brasil, num exemplo de confusão entre subversão política e sexual. No caso de Casement, seu enforcamento como espião irlandês foi catapultado pelas evidências de sua devassidão brasileira. Ambos exemplificam aquilo que Devassos no paraíso busca revelar: a narrativa do desejo que a historiografia oficial brasileira nunca ousou contar, pelo simples fato de ignorar os mais legítimos demônios que habitam os subterrâneos da nação.
* Nota da edição: Respeitamos, no texto, o uso do termo LGBT (e não LGBTQ+) pelo autor. O título, onde consta "LGBTQ+", é uma prerrogativa do Pernambuco.
> João Silvério Trevisan, escritor, é autor de Pai, pai