Bastidores set.18 Hana.Luzia

 

 

Nuit, desespoir et pierrerie
S. Mallarmé

Quando o Suplemento Pernambuco me sugeriu que escrevesse um texto contando como nasceu meu novo livro, passei a caçar cuidadosamente uma ponta do fio dessa história, porque a de Lua na jaula tropeça no próprio (fio), como em outros que me enredaram, para que eu possa compreendê-la objetivamente, e assim também transmiti-la. Tendo acontecido por vias pouco usuais no meu exercício da poesia, a abordagem que me é possível exige que fale de mim mais do que gostaria.

A primeira coisa que me ocorreu foi que, na verdade, ao receber a proposta da editora Todavia para publicá-lo, eu ainda não tinha total consciência de que ali já respirava um livro. Na época, minha relação com os poemas que o compõem era de um estranhamento que nunca havia sentido e, para potencializar minhas dúvidas, eu trazia os parâmetros abalados por anos de isolamento, quando enfrentei uma depressão persistente e devastadora, aliada a profundas transformações anímicas, das que não deixam pedra sobre pedra, e, à primeira vista, caminho algum. Com a ausência de concentração crescente causada pelo “mal do século”, aos poucos percebi, assustada, que perdera a capacidade para seguir trabalhando com os frilas de costume: traduções, matérias jornalísticas, eventuais crônicas poéticas; meu estado tornava tudo muito lento, o que por sua vez me levava a estourar prazos e nunca ficar satisfeita com os resultados. Vi-me bloqueada para a leitura, alimento indispensável para quem escreve e, enfim, para o contato social. Sem meus recursos básicos, exaurida pelas tentativas de agir “normalmente” durante anos, me recolhi para processar tudo isso. O desmantelamento interno refletiu-se, claro, no meu fluxo criativo, e os versos, cada vez mais escassos, ficavam vagando por aí desordenados, ou registrados em algum arquivo remoto no computador.

Já com um pé nesse exílio, havia publicado pela editora 7Letras Exercícios de levitação (2002), uma compilação dos textos semanais que escrevi para a Folha de S.Paulo entre 1996 e 2001, e alguns parcos poemas novos; e Notícias da ilha (2012), um apanhado da minha poesia desde Risco no disco (1981), acrescido de pouquíssimos inéditos, também. Era quase nada, mas havia movimento. Assim mantive distância da estagnação, perigo letal.

Nesses anos, muitos, além de tratamento medicamentoso, terapias, contei com o carinho e a generosidade de amigos, familiares - especialmente de minha filha -, para não me entregar à mudez definitiva. Até que, depois de inúmeras recaídas, num ritmo lento e intermitente, a depressão começou a dar indícios de que se dissolvia e arrisquei os primeiros passos fora da caverna. A sombra perdia a parada, embora o trabalho de reestruturação anímica continuasse – e continua.

Em seguida, os editores Marília Garcia e Leonardo Gandolfi, da Luna Parque Edições, me propuseram republicar Risco no disco, meu primeiro livro; fechei com eles sem hesitar, o projeto era ótimo, e mais que oportuno. A edição ficou linda, a reação dos leitores foi bacana – a das gerações mais novas, comovente – e houve uma boa repercussão em nosso meio. Muito feliz o momento, a ideia e sua concretização. Isso me estimulou a organizar os poemas dispersos, e passei a trabalhar neles, o que me levou a reconectar, mesmo que na ponta dos pés, o fluxo criativo. Trabalhei mais um bom tempo no material esboçado até que percebi que talvez houvesse material para um livro; porém, faltava-lhe “alma” - e, para mim, lançá-lo não se encaixava nessas circunstâncias.

Foram os editores da Todavia que, no ano passado, com profissionalismo, tratamento impecável e paciência, enfim me convenceram de que Lua na jaula deveria ser publicado em 2018. Passei a me dedicar mais intensamente aos textos, até “animá-los” e me sentir confortável para que fossem publicados.

O título me chegara num insight havia tempo, e o incorporei sem refletir- me, agradou o resultado sonoro da combinação das palavras, e a princípio não o associei às vivências que narrei acima; mais tarde, também, é que me dei conta de que dentro da (palavra) “jaula” há uma (palavra) “lua”de trás para a frente. Recurso metalinguístico interessante que eu jamais teria encontrado intencionalmente. Para minha sorte, o inconsciente trabalha sem deixar que nossos infortúnios o paralisem.

Nunca soube falar de forma crítica sobre meu trabalho. Sei que ele não se reduz a caminhos“mágicos”, à “pura inspiração”, ou “espontaneidade”; porém seu processo derrapa em certo mistério, que não me interessa desvendar.

Meus versos ainda passeiam entre o humor e a melancolia, uma das minhas marcas, dizem, mas agora talvez em outras proporções. O que posso dizer mais: quando setembro vier, o livro será lançado, os poemas estão vivos e passam bem.