Ao escrever este texto me surge um verso – VIDAMORTE – da poeta e amiga querida Bruna Beber, lido na parede de seu apartamento em São Paulo, em 2010, quando eu não sonhava com uma sorologia positiva e muito menos tinha a intenção de organizar um livro de poemas em torno do hiv/aids [nota 1]. Esse verso, que traduz o sentido da curadoria de Tente entender o que tento dizer: poesia + hiv /aids, me voltou a memória durante um debate sobre o livro e a “literatura pós-coquetel”, quando o poeta Silviano Santiago afirmou que o convite para participar da antologia fez com que ele voltasse a escrever poemas e, sobretudo, a compreender que na vida estamos iminentes: programados para amar e morrer. VIDAMORTE.
Quando resolvi organizar Tente entender o que tento dizer: poesia + hiv / aids já havia tido o prazer de ler textos inspiradores sobre o tema, desde os mais poéticos e pulsantes aos mais históricos e técnicos. Entre os principais autores, estavam Caio Fernando Abreu, Herbert Daniel, Betinho, Bernardo Carvalho, Silviano Santiago, Alexandre Nunes de Sousa, Denilson Lopes, Eduardo Jardim, Marcelo Secron Bessa e João Silvério Trevisan. Aliando reflexões sobre o vírus/linguagem, as indagações do meu processo de viver com hiv e para a poesia, e a percepção do hiato do hiv/aids na literatura brasileira cheguei à decisão de elaborar esse projeto tomando como norte o verso a linguagem / o verdadeiro / vírus, que publiquei no livro Há um mar no fundo de cada sonho (Verso Brasil, 2016). Trata-se de um diálogo com o escritor norte-americano William S. Burroughs que sentenciou aquilo que só compreenderia ao ler o resultado “reagente” para o meu exame de hiv: language is a virus from outer space.
>> Leia dois poemas da antologia Tente entender o que tento dizer: poesia + hiv / aids
Não restringi a seleta de poemas apenas para pessoas que vivem com hiv/aids, pois compreendo que todos lidamos direta ou indiretamente com o vírus: um flagelo da humanidade. Entendo as questões de cada grupo social e a urgência dos discursos diante das mortes que ainda ocorrem em decorrência da aids – principalmente entre as populações mais vulneráveis como negros, pobres e gays –, contudo, optei por apresentar uma cartografia de poetas de diferentes gerações e sorologias e suas percepções sobre o tema. Ou seja, ainda que a polifonia de representatividade seja um fator contemplado neste trabalho, o fio condutor da curadoria foi a proposta estética, a qual apresento dividida em três grandes eixos: linguagem, memória e corpo. Sendo assim, os desdobramentos sociopolíticos que, por ventura, possam ser levantados devem ser lidos como resultado da força da poesia.
Nesta “era pós-coquetel” e com o aumento de retrocessos, inclusive em relação às políticas públicas relacionadas ao hiv/aids, espero que esse livro possa ampliar as vozes para além dos dados médicos e estatísticos, nos trazer mais perguntas do que respostas: Como a literatura, sobretudo, poética, tem registrado as formas de apreensão da infecção? As notícias de imprensa, as experimentações poéticas, as narrativas ficcionais e os relatos biográficos podem ser considerados corpos textuais da história do hiv/aids? A temática do hiv/aids nas artes pode ser lida como estratégia política de atuação e visibilidade? A poesia pode ser vista como forma de reação ao diagnóstico? É possível uma literatura “pós-coquetel”?
O livro é dedicado a autores, artistas e ativistas que influenciaram minha leitura sobre o hiv/aids, mas sobretudo me marcaram Herbert Daniel e Betinho (fundadores da ABIA: Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids). Com eles amadureci a minha percepção sobre o tabu em torno do assunto. Foi pensando neles que, no dia do lançamento do livro, tive a ideia de doar o percentual de direitos autorais da organização do livro para a ABIA, nada mais justo. Organizar esta antologia é a minha forma de agradecer pelo trabalho desenvolvido por essa instituição, pelos trabalhos de escritores e ativistas com o tema e, sobretudo, uma forma de exercitar a minha fé na poesia e também na solidariedade – “a grande vacina contra a aids”, como ensinou Herbert Daniel.
Nesta reunião de poemas, a doença é a linguagem, a linguagem é o vírus, a memória é corpo, e o corpo é o texto.
NOTAS
[nota 1] Tanto neste texto como no título do livro em questão, optei por grafar as siglas hiv e aids em minúsculas. Acompanho a posição adotada pelo escritor e ativista Herbert Daniel em seus ensaios e manifestos, referindo-me assim ao fenômeno ideológico e político do hiv/aids, na intenção de diminuir o protagonismo da doença em si frente à vida do indivíduo (Cf. H. Daniel; R. Parker, Aids: dois olhares se cruzam numa noite suja – a terceira epidemia. Ensaios e tentativas. São Paulo: Iglu, 1991, p. 47-52).