A história de um livro escrito em meio a muitas dúvidas e desistências
José Castello
Ribamar, como outros livros que escrevi, foi um projeto que se impôs – um livro que, de forma sutil, mas violenta, me obrigou a escrevê-lo. Meu projeto inicial era escrever um ensaio sobre a relação dos escritores com seus pais. A opção pela literatura é vista pela família, em geral, como fantasiosa e insensata. Os pais quase sempre lutam para proteger seus filhos das dores e dos desassossegos inerentes à escrita de ficção. Pensei em escrever um ensaio breve sobre os obstáculos que um jovem escritor precisa enfrentar para chegar a si. Sobre o quanto precisa abandonar, o quanto precisa esquecer, para chegar a ser.
Fiz minhas primeiras leituras, tomei as primeiras notas, mas logo a minha própria história pessoal começou a se impor. Resisti muito. Não queria escrever uma confissão, ou um livro de memórias – e, na verdade, não escrevi. Escrever sobre minha própria experiência me parecia desinteressante e excessivo. Lutei para fixar a atenção na vida de grandes autores como Proust, Joyce, Virginia Woolf, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa. Mas alguma coisa, esquiva e traiçoeira, sempre me empurrava de volta a mim mesmo.
Um dia, cansado de lutar, resolvi desistir do livro que planejei escrever e aceitar um livro diferente, que não planejei, um outro livro, que pedia para ser escrito. Assim surgiu Ribamar: a partir de notas caóticas e dispersas que comecei a tomar a respeito de minha relação com meu pai – e sobre como a literatura se colocou, desde cedo, entre nós dois.
Decidido a não escrever uma biografia – até porque não acredito que meu caso seja especial –, passei a permitir que tudo o que me acontecia, tudo o que lia, tudo o que imaginava, entrasse em meu livro. Ribamar parte disso: de uma desistência. Desisti de me impor um projeto. Desisti de comandar minha escrita. Para atenuar minha solidão, resolvi escrever Ribamar como se ele fosse um diário– estranho diário, que não falava do presente, mas do passado. E que não falava da vida que tive, mas apenas a rondava.
Tudo ainda parecia, porém, frágil demais. Um dia, por acaso, um amigo encontrou em um sebo do Rio de Janeiro um exemplar da Carta ao pai, de Franz Kafka, o mesmo livro que eu dei de presente a meu pai em meados dos anos 1970, em um momento em que mal conseguíamos nos falar. Trinta anos depois, o livro me voltava, não só para trazer de volta fortes lembranças de meu pai, José Ribamar, mas para invadir e comandar meu próprio livro. A partir desse momento, Franz Kafka, e seu pai Hermann, passaram a ser, eles também, meus personagens. Mais que personagens: eles passaram a me ditar partes inteiras de meu livro.
Talvez para resistir à massacrante presença de Kafka, comecei a anotar, compulsivamente, todas as ideias que me vinham à cabeça – mesmo que elas não tivessem relação alguma com o livro que estava a escrever. Passei a anotar meus sonhos, lembranças dispersas, histórias que me contavam, ideias que me vinham. Voltei a ler Kafka e, enquanto lia, anotava também. As notas cresciam em minhas mãos, sem que eu soubesse que destino lhes dar. Histórias verdadeiras se misturavam a histórias falsas, sonhos a leituras, devaneios a lembranças alheias, fatos a invenções. Todas as fronteiras se quebravam, eu me afogava– e isso era meu livro.
Mas ainda me faltava um chão – e esse chão só surgiu quando decidi fazer uma viagem a Parnaíba, a cidade em que meu pai passou a infância e adolescência. Não viajei a Parnaíba, porém, como um repórter, ou um pesquisador. Visitei muitos lugares, incluindo arquivos, e conversei com muita gente, incluindo parentes. Fiz, porém, um exercício de “desapuração”, e não de “apuração”. Parnaíba me serviu de moldura para enquadrar as ideias que me asfixiavam. Não se tratava de recuperar a verdade – que estava perdida para sempre. Muito menos, de desejar um encontro com meu pai, que morrera mais de 20 anos antes. Não queria acertar contas com a família, ou passar minha vida a limpo. Tratava-se de outra coisa: de escrever uma ficção. De usar o que eu tinha para chegar ao que eu não tinha.
Quando me dei conta de que, apesar de tudo, eu escrevia um romance – ou, dizendo melhor, um romance em mim se escrevia – tomei posse, enfim, de meu livro. Ainda assim, me afogava em notas dispersas, relatos desconexos, impressões soltas. Como ligar tudo aquilo? A resposta me veio no dia em que, por acaso, ouvi minha mãe, Lucy, que está velha e doente, cantarolar uma canção de ninar. Era a canção que meu pai cantava para me ninar, ela me explicou. Sabia a canção inteira, nota a nota. Nada lhe escapava, a canção estava viva! A canção era um pedaço do passado que, na voz de minha mãe, irrompia em meu presente. O tempo se quebrara, a literatura começava a mandar.
Entendi, de vez, que as fronteiras entre o presente e o passado são artificiais. A literatura não tem compromissos com a verdade, com a cronologia, com a ordem. Em uma ficção, você pode tudo – e pode inclusive manipular o passado e o presente, deformá-los, traí-los. Trabalhá-los à sua maneira, para seu prazer, para satisfazer desejos ocultos, ou intenções que jamais conhecerá. Um escritor deve, antes de tudo, se entregar. Foi o que comecei a fazer. Um livro é, sempre, uma entrega.
Transformei a partitura da canção de ninar em um esboço matemático e o usei como espinha de meu livro. No fundo de Ribamar, posso dizer sem exagero, “toca” uma canção – embora ninguém a ouça. A estrutura de meu romance me veio, mais uma vez, de onde eu menos esperava. Aprendi, com isso, que um escritor deve, antes de tudo, escutar o mundo. Estar atento aos ruídos, falatórios, suposições. Manter-se em posição de espera e de atenção, pronto para aceitar tudo o que lhe aparece, verdadeiro, ou não. Há algo de fortemente passivo na postura do escritor. Ou bem ele se mantém aberto e disponível, ou não consegue escrever. Assim me surgiu Ribamar: como uma invasão, ou um acidente. Como uma submissão. Depois de escrevê-lo, sinto grandes dificuldades em falar na figura do “autor”. Não acredito mais nesse sujeito cheio de si, dono de suas ideias, vaidoso e arrogante, que se nomeia escritor. Um escritor não se nomeia, nem se autoriza. Ou bem a escrita o mobiliza e atinge, e ele consegue aceitá-la e ceder a sua força, ou um escritor nada é.