Abaixo, um texto sobre os bastidores que permitiram a criação do romance O peso do pássaro morto, de Aline Bei, lançado recentemente pela editora Nós.
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a Descoberta:
tenho dois começos na palavra escrita. o primeiro aconteceu quando eu era criança e via
minha mãe chorando pela casa, meu pai chegava tarde. eles conversavam já na cama, a parede fina. tinha alguma coisa errada
com o dinheiro, a aline vai ter que mudar de escola
não pelo amor de deus.
eu amava minha escola, a gente ia ter que mudar de cidade também eu não quero ir pra ribeirão preto até que um dia eu tive uma ideia: abri meu caderno do pernalonga e comecei a escrever um livro
pelo título
o ABC da Poesia
(não me orgulho)
fiz uma espécie de sumário com os nomes dos poemas de A a Z. depois fui criando os textos, lembro que o da letra B era sobre o Brasil. quando terminei tive certeza que a crise financeira do meu pai também terminaria, eu pensava que era assim instantâneo, o nascimento da poesia e o fim
de um problema.
já meu segundo começo foi na faculdade de Letras. nós criamos uma revista para o curso chamada Transa, uma homenagem ao disco do Caetano, comecei a escrever para esse projeto e nunca mais parei.
no meio desses dois momentos,
eu li muito.
e teve também o Teatro, minha primeira profissão. até o início da fase adulta eu imaginava que seria atriz pra sempre e o Palco, essa vivência do texto dentro de um corpo, mudou tudo na hora que comecei a escrever. lembro até hoje de quando li Nelson Rodrigues pela primeira vez e depois assisti uma peça, 17x Nelson, dirigida por Nelson Baskerville no porão do antigo Fábrica: mal dormi naquela noite. eu tinha 16 anos e não fazia ideia que no mundo existiam coisas daquele tamanho.
fui me afastando aos poucos do teatro profissional, mas a minha atriz
nunca morreu em mim. aliás
é ela quem escreve
ela
e a menina que fui.
o Peso do Pássaro morto:
para contar sobre o Pássaro e seus processos, tenho que falar um pouco sobre a menina que fui. eu era uma criança muito silenciosa, nunca dizendo como eu me sentia
ara os adultos e suas
pernas.
durante a minha infância tínhamos pássaro em casa e um dia, era sábado, minha mãe percebeu que o nosso canário estava com a unha comprida. me pediu pra segurar o bichinho enquanto ela pegava o cortador na cozinha. fiquei segurando, apreensiva, ele me olhou virando a cabeça, e nesses segundos de espera e troca
o passarinho morreu na minha mão.
foi Brutal,
a sensação nunca mais me abandonou. ainda assim não contei isso pra ninguém
e meu livro nasceu dessa imagem, anos depois. de novo o título foi o primeiro a brotar e enquanto eu me debruçava no teclado buscando a história fui lembrando do pássaro morto cabendo/não cabendo na palma, também de um livro (aos 7 e aos 40 - do Carrascoza) que dividia a narrativa pelas idades do protagonista. vou tentar fazer assim, pensei, e devagar fui percebendo que queria contar uma história sobre Perdas, basicamente, igual naquele poema da Bishop.
na parte prática, eu consegui publicar o livro através do prêmio Toca, promovido pelo escritor Marcelino Freire. foi assim que eu conheci a Simone Paulino, ela deu casa pro meu Pássaro, um lugar sem grade bexiga no céu chamado editora Nós.
* Aline Bei é atriz e poeta. O peso do pássaro morto é o seu primeiro romance.