Ontem uma amiga me perguntou por que eu demorei tanto tempo para publicar um novo livro. Respondi que precisava de tempo para responder, porque nessa resposta entram aquelas complicadas coisas da vida. Engraçado que sejam justamente essas coisas também aquelas sem as quais este livro de agora nunca teria sido escrito e publicado.
Em 1999, eu cursava doutorado em Filosofia e na seção “Sobre a autora”, do meu livro Pastilhas brancas, eu tinha dito que não sabia se filosofia e poesia são caminhos que podem ser trilhados ao mesmo tempo. Houve uma tentativa de conciliar esses caminhos seguindo pelo No caminho de Suam. Este só tinha a ver com Proust porque a antiga Suam, onde eu tinha passado a dar aulas, ficava na Avenida Paris, entre a Avenida Londres e a Avenida Nova York. Mas eu chegava mesmo lá era pela Av. Brasil, no ônibus 498, onde ouvi uma moça que viajava de pé no ônibus lotado contar à outra uma coisa que ela dizia ser muito bacana: uma vez tinha dado sorte e feito aquela viagem até sua casa sentada. A maior parte dos poemas de No caminho de Suam foi escrita nesse ônibus, em trânsito pela primeira vez da Zona Sul, do ambiente burguês e acadêmico, para o centro universitário do subúrbio: sempre a partir do mais estranho na direção do mais familiar, a escrita, algo que não se consegue sem sair de casa. Lembro um poema desse livro, que está também em Quase todas as noites, que fala de uma moça, vista da janela do ônibus, em sua tentativa de encontrar uma trégua, uma brecha na continuidade brutal do tráfego sobre a pista: o casaco amarelo chama / atenção mais que sua vida nunca o vento / em seus cabelos / será belo.
Dois anos depois, trilhar ao mesmo tempo esses dois caminhos se mostrou impossível. Abandonei o doutorado e a poesia. Passei a trabalhar em uma editora e a dar aulas de língua portuguesa na Baixada Fluminense, compreendendo pela primeira vez que existe uma grande diferença entre subúrbio e periferia, e mais do que isso não mais podendo estabelecer de modo ainda nítido a diferença entre o familiar o estranho, aprendendo na marra a habitar corpos estranhos que antes eu só via a distância e de passagem, pela janela. Quem não aprende isso é incapaz de compreender como, por exemplo, o simples ato de arrumar o quarto em casa se articula com a brutal desordem do mundo como no poema Entropia. Foram necessários muitos anos e muito esforço, como se precisasse antes aprender primeiro uma nova vida, para voltar à poesia. O poema de abertura de Quase todas as noites, cujo título é Aufgabe (que significa ao mesmo tempo tarefa e renúncia), fala de um tecido, o de nossa morte cotidiana e desse esforço de vida, a escrita, como o do destecer, de puxar “o fio longo da mortalha”, que, ambiguamente, não se sabe se subtrai da noite um dia que escapa ou sucumbe entre todos os “dias a morrer na praia”. Desse modo, “puxar ainda assim e aos poucos o fio longo da mortalha”, no processo de composição desse livro, é um método, um caminho, mas também o é aproveitar cada brecha como a moça tenta aproveitar alguma mínima interrupção do tráfego para a travessar a pista. A maioria dos poemas desse livro foi escrita no trânsito: dentro ônibus, da van, dirigindo um carro em alta velocidade ou parada em um sinal, atravessando uma passarela sobre uma autoestrada sob o sol escaldante ou sob a tempestade cujos raios mais adiante vão partir e derrubar a pequena torre da igreja evangélica que por pouco não me atingirá a cabeça. Mas nesse processo há outras aberturas mais amplas, aquelas que são de um espanto que impede que o tecido da mortalha se estenda ininterruptamente sobre nós e nos cubra: os encontros com amigos que não se veem há quase 30 anos, a súbita ou esperada perda de pessoas amadas, os amores que impõem uma ordem em que não é mais o coração que sai pela boca, mas a boca que sai pelo coração. Também os sonhos que nos curam dessa noite diária, mas também dependem dela, os sonhos em que somos repetidos por um “novo método da vitória”, que aguardam pacientemente a lentidão mortal dos fatos para nos contar a história instantânea de nossa vida, em que tudo, todo disperso, se reúne numa experiência em que podemos acesos, vivos, confirmar nossos limites.
Em 2016, experimentando a trégua de uma licença para um novo doutorado, chegou, por conta de um erro, um simples “oquei que não dei no formulário” de um pedido de bolsa-sanduíche, o ano em que não fui para a Alemanha (título de um poema inédito), que se tornou por isso o ano de um “desejo/indefinido de alegria/de buscar e encontrar /a alegria /que nenhuma viagem poderia me dar”, o ano em que concluí o Quase todas as noites. Esse livro é um tecido feito a partir de um tecer paciente os fios como os que tentamos roubar daquela mortalha, uma prova de que aquilo que encobre o poema é também a sua própria matéria e que, por isso, precisamos pensar que todo livro é já um tecer e um ser destecido. O que chamamos de os bastidores de um livro não é apenas aquilo que está por trás dele, mas também o que está à frente, uma escrita que existe apenas em forma de futuro.