O livro nasceu no Morro da Mangueira há 3 anos. Tava eu com uma escritora mais velha pra puxarmos oficinas com a molecada e, após 90 minutos com cada turma, nos perguntamos “como foi o seu trabalho?”. A roda na minha sala foi cabulosa com leituras e adivinhas pinçando no verbo e no cotidiano nossa ancestralidade. Já ela cafungou seu nariz de frustração, disse passar uma hora tentando explicar quem era Zumbi, que trouxe pra chamar força e foi motivo de nojo pela criançada negra do morro. Desconheciam a história de quilombagem e frisavam que zumbi era coisa endemoniada, alma penada caindo aos pedaços, assombração. No repente, lhe respondi que ela podia ter concordado em partes. Zumbi assombrava mesmo, mas metia medo era nos donos das leis, chicotes, multinacionais e cruzes. Pavor de quem brinda as xicrinhas de porcelana com o sangue de quem vampiriza, terror de quem rege latifúndios e cabrestos. Fiz uma cena curta, rodopiei e ela lançou: “Tá aí, tens um livro pronto”. Cultivei a ideia durante um verão inteiro. Rodei botecos, escadões, feiras e malocas com os rascunhos. Feições, papos, gemidos e giros de corpo dos personagens vêm das sombras noturnas e das beiras de córrego.
No livro, o menino Candê equilibra o que aprende de asqueroso na escola e na TV e o que conhece dentro de casa com seu tio Prabin, que ao costurar meias lhe detalha medos, trairagens, iras, folias e sonhos de Zumbi em Angola Janga, mais conhecida como Palmares. Manta, a mãe do menino, e Dona Cota Irene, a sua vó, com suas sapiências, fortalezas e graças lutam com os perreios escancarados de nosso tempo, como o moralismo que baba censuras, a violência religiosa (que se diz cristã) que acomete os terreiros e a matança da juventude negra em nossa guerra cotidiana e secular, genocídio que escorre em nossas valas chancelado pelo medo que pipoca via satélite e nas esquinas militarizadas. Disso, nossa molecada entende bem, muito mais que Branca de Neve. Em rodas, lendo o livro por quebradas, escolas, bibliotecas e universidades, compreendem essa cortina diária e debatem com vários prismas, projetos e fomes. Por isso o livro tem a morte e suas contradições como um dos seus cernes, a dos funerais que celebramos festando ou a das covas onde só podemos mastigar o choro e a raiva.
Chave é a proposta de se ler em voz alta com guris e coroas. Esse fundamento guiou minha escrita pela intimidade partilhada com meu filho Daruê, parceiro de viagem por dezenas de gibis e livros. Em seu letramento nas horas de cama, quintal e condução, bebi nos risos, pedregulhos e agasalhos que a leitura oferece, sacando respiros, fluências e encantos entre contextos duros que envolvem nossas tardes suburbanas. Após anos como educador de Jovens e Adultos pareando com turmas, vencendo traumas da caneta (mais pesada que a enxada) e aprendendo a bailar nas páginas que podem ser uma muralha, um salão escorregadio ou uma bocarra fedorenta, meu filho me propiciou ampliar de novo a percepção das frases no papel. Foi essa a marcenaria e a afinação do instrumento. Daruê também foi um pilar porque juntos passamos tristezas e conquistamos redenções, diante do racismo que o pegou pelos cabelos e pela pele em creches e salas de aula. Assim como Candê (“Candengue” significa “criança” em quimbundo, língua que mais africanizou nosso idioma), meu filho presenciou ou foi carne de humilhações e de nossas respostas fundamentadas às violências que espetam nossos erês em todo canto, até se organizar numa autoestima ainda flexível e delicada. Assim a paternidade negra, com a presença do Tio Prabin na história e suas lacunas, também é uma das artérias que carreiam ideias pelo corpo dos capítulos adentro. E para manter criança e livro em movimento aprumado, foram fundamentais nossas vivências nos coletivos orgulhosos de resistência das quebradas, nossas saborosas pesquisas redescobrindo nossas linhagens e as várias relações com um país onde nossa grandeza ainda mal resvala nos currículos oficiais escolares ou midiáticos e onde somos ao mesmo tempo integrados e espirrados, centro e margem.
O processo trouxe as ilustrações majestosas de Edson Ikê. Siderais, sensitivas, também nítidas viagens de quem conhece bem dos sonhos e cruezas das beiradinhas. Ikê, pesquisador profundo do jazz, desenha como se tocasse seu trompete e chapa toda gente que cata o livro. Trocar empolgação e lidar com o trabalho do Ikê, compreender o traço, as imagens e volumes abrindo frestas nas cenas, foi um fruto de sustança que essa obra já me floresceu. Livro amarelo e preto como a capoeira de angola de Mestre Pastinha, homenagem ao Ypiranga, time dos estivadores da velha Salvador da Bahia.
O livro foi lançado numa noite de quizomba, com o afoxé do Bloco Ilu Inã, o jazz do Conde Favela Quinteto e os violões e vozes da banda Coentro Rosa, que musicou alguns capítulos, como fizemos com contos de meu livro anterior, o Reza de Mãe. Foram 200 pessoas comer guloseimas, cantar e se abraçar, pulsar e receber uma obra que sonha ser lida a quatro olhos. Resta saber, e essa dúvida também foi asa na feitura do livro, se o circuito editorial nacional “oficial”, tão pálido e tão estrangeiro à maioria de nossa gente, pretende nos manter como gaveta, como mero anexo. Ou se vamos também influenciar a água desse rio e meter quentura na anestesia. Se as periferias e morros, suas educadoras e seus bibliotecários comunitários que clamam por livros que combinem e questionem nosso imaginário, serão ainda menos importantes às editoras do que Paris ou as prateleiras das livrarias chiques.