Berje abecedario out17

 

 

Há livros que estavam prontos desde sempre. Só não haviam sido escritos. Essa é a sensação que tenho quando vejo o Abecedário de personagens do folclore brasileiro, obra de minha autoria, que acabou de ser lançada e que integra a Coleção Personagens do Folclore Brasileiro (FTD Educação). As personagens que habitam cada uma de suas 416 páginas existem a partir de uma data que não pode ser marcada e permanecem vivas até hoje, no recôndito da nossa imaginação. Figurar em páginas impressas corporifica e registra algo que é imaterial e por isso possui uma força própria, que é difícil (d)escrever.

Longe de ser algo abstrato ou esotérico. Fatos revelam que há, sim, algo de encantador nesse desfile de personagens conhecidas e absolutamente estranhas do imaginário brasileiro. O filho de uma amiga agora só dorme depois que ela lê um verbete do livro. Isso porque tem sonhado com esses seres todas as noites, embarcando em aventuras divertidas e interessantes. Uma mãe me conta que trocou a leitura de algumas dessas lendas por uma hora de video game e depois do terceiro dia, ao invés de reclamações chorosas pela “troca injusta”, houve pedidos para “mais uma história”. Muitos que me pedem autógrafo sorriem ao folhear o livro: pais, avós, crianças, artistas, professores. Lembram-se de si mesmos, de suas reminiscências e mistérios, de um tempo vivido ou imaginado.

Desde que comecei a escrever o Abecedário, há três anos, – e minha editora Isabel Coelho é testemunha! – fui invadida pela presença desses entes que, além de concretamente terem preenchido minhas horas, habitaram meu sono, realizando uma espécie de magia que só as coisas que necessitam ser e existir possuem.

O livro tinha mesmo de ser escrito e conheço uma dúzia de escritores do mais alto calibre que poderiam tê-lo feito. Mas, por outro lado, compreendo que se fui eu a encarar essa empreitada, só o fiz porque me preparei para isso todo o tempo, mesmo sem me dar conta. Não só porque eu colecionava as histórias desses seres desde pequena, mas porque ouvia esses relatos com intensa curiosidade e desejo de querer saber mais (eu apenas sabia que havia mais, porque os contos de tradição oral têm sempre mais um ponto a ser contado). Não apenas porque a pesquisa sobre eles começou quando li Monteiro Lobato e seu O saci, ou quando conheci A psicanálise dos contos de fadas, de Bruno Bettelheim, que me convenceu da necessidade dessas histórias para crescermos com graça nessa vida tão complexa.

Foi a experiência e a emoção que cada narrativa dessas provoca onde quer que passe, que me deram a certeza de que essas histórias que estão nas raízes das nossas árvores, nas águas dos nossos rios, nos ventos afoitos que cortam nossos campos e na dura seca do sertão, estavam prontas, jorrando em abundância, à espera de quem se dispusesse a contá-las.

Para os estudiosos, o folclore é o saber popular, um conhecimento sem bula, sem uma face própria. O desafio era escrever sobre o que, na maior parte das vezes, é apenas algo que se ouviu-não-sei-onde-de-não-sei-quem. É claro que não fui eu quem começou a registrar essas façanhas, esses relatos embebidos de medos, invejas, alegrias e transformações, esses causos cuja origem, muitas vezes, é impossível delimitar. Muitos antes de mim fizeram isso: dos nossos antepassados das cavernas, aos nossos cordelistas que cantavam nas feiras no interior desse país, passando pelos folcloristas como Câmara Cascudo, Simões Lopes Coelho, Silvio Romero e tantos outros. Todos eles foram minhas fontes e inspiração na busca de recontar, de um jeito contemporâneo e atraente para essas novas gerações, o que é imemorial.

O resultado é esse livro que traz 141 personagens do folclore brasileiro, dispostas em ordem alfabética, ricamente ilustradas, em que se encontram, além das origens e um pouco da história de cada uma, as relações com outras personagens e sua presença em grandes obras da literatura brasileira. Fazer essa pesquisa e esse recorte foi um extenso quebra-cabeças, pois haveria mais que o dobro para incluir no livro. A opção por ilustrá-las também foi outra epopeia: a maior parte delas tem, pela primeira vez, um registro visual, imortalizado pelo traço genial de Berje (pseudônimo de Cezar Berger). Sem falsa modéstia, creio que produzimos um inventário do que há de mais significativo no nosso folclore.

Muitas razões me moveram durante o processo criativo dessa obra. Uma delas me inquieta e tem provocado reflexões: vivemos tempos incertos. Tempos em que confiamos nossas memórias aos HDs dos computadores, em que é mais importante fazer uma selfie no celular do que aguentar a emoção do momento, tempos em que teclar vale mais a pena do que dialogar pela fala. Essas personagens me pareceram o melhor contraponto, a grande lembrança de quem somos e de onde mora o cerne do nosso povo. Entendi que resgatar essa memória era necessário para que nos lembremos de que é preciso resistir ao “rápido e ligeiro”, tão somente para viver plenamente a vida que nos pertence.

Assim, o Abecedário de personagens do folclore brasileiro chega para oferecer ao Moderno, o Eterno. Evoé! Vida longa para ele!