Não está mais aqui quem falou.
Não gosto da ideia de “gêneros literários”. Não sei quem a inventou, mas tenho certeza de que ela só “pegou” porque serve para organizar melhor as prateleiras das livrarias ou porque facilita os catálogos das editoras.
Depois de mais de cem anos de Marcel Duchamp e de Tristan Tzara, para citar somente dois, dá para acreditar que ainda há concursos literários recusando, na categoria “romance”, livros escritos fragmentariamente?
Há tempos queria escrever um livro que explorasse várias possibilidades textuais e literárias: poéticas, enumerativas, etimológicas, prosaicas, fragmentárias e outras cujo nome ainda desconheço.
Uma delas, que, para conveniência terminológica, pode ser chamada de conto, são experiências que eu venho realizando há algum tempo, de organizar encontros ficcionais entre personagens que admiro, sejam eles reais ou históricos. Já tinha escrito, há algum tempo, um encontro entre Manuel Bandeira e Samuel Beckett e outro entre Marguerite Duras e Rubem Braga. No primeiro, por exemplo, Bandeira confessa a Beckett não ter entendido um trecho bem específico de seu Molloy e, com uma pergunta que é um misto de inocência e malícia, essa combustão super inflamável que só Bandeira conseguia criar, acaba por desestruturar Beckett, sempre implacável.
Já no encontro entre Braga e Duras, invento que Braga, que morava em Paris na década de 1940, teria ajudado Duras a assassinar um nazista, coisa que eu mesma teria adorado fazer.
Para este livro, resolvi apelar: juntei Marilyn Monroe com Isak Dinesen (reunião que, para meu espanto maravilhado, realmente ocorreu); Einstein com Dorival Caymmi; Tirésias com Dédalo; eu mesma com a personagem Ana, do conto Amor, de Clarice Lispector e espalhei essas trombadas estrategicamente ao longo do livro. Muitas vezes, não se sabe bem a dose de realidade que cada uma dessas conversas contém, mas a ideia é essa mesma. Misturar tudo, juntando o que foi com o que poderia ter sido, ou com o que eu gostaria que tivesse sido.
Da mesma forma, como cultivo um grande amor pela etimologia e como penso que ela contém uma carga ética que ajuda, pela pesquisa das origens concretas das palavras, a resolver vários problemas atuais, pensei também em escrever breves pesquisas poético-etimológicas. As origens das palavras “data”, “dom” e “dose”, por exemplo, têm muito em comum e podem revelar, em confronto, toda uma história da doação e da dádiva, práticas de que somos muito carentes nos dias que correm. A abstração generalizada, a facilidade com que tudo se transforma em “conceito” e como quase tudo cabe nesta grandeza vazia, faz com que o falante (e o escrevente) se afastem cada vez mais da concretude e da imanência das coisas, fundamentais para a literatura e para o convívio fraterno.
Além dessas duas formas textuais – a trombada e a prosa etimológica – o livro também traz um mini-manifesto (produto de um sonho), listas, frases e fragmentos.
Minha intenção, com ele, é bagunçar e imergir na bagunça, palavra que, aliás, adoro. Não sei muito bem a diferença entre acaso, coincidência, história e realidade. Não sei muito bem a diferença entre real e verdadeiro, nem entre falso e mentiroso. Acho espantosa a palavra “tordo”, a palavra “vírgula” e posso ficar minutos pensando nela, com ela, por ela. Da mesma forma, acho odiável a expressão “de acordo com”, tenho pena dela, sofro por ela. As palavras, as paisagens, as coisas e os problemas são parte de um mesmo todo, todo de uma mesma parte. Por isso, das três epígrafes que coloquei no livro, uma dela é algo em que acredito profundamente: “o que poderia ter sido também é um fato”.
Essa é uma frase que me consola, quando me flagro melancólica demais por algo que poderia ter acontecido mas, supostamente, deixou de ocorrer. Digo supostamente, porque o fato de ele poder ter acontecido já é, em si mesmo, um acontecimento, uma fonte de invenção. É isso o que aparece, por exemplo, no conto eu te amo, em que um amor que poderia ter sido, não foi; entretanto, gerou o conto, o que prova que, de alguma forma, ele foi sim.
Outra coisa importante neste livro, para mim, são o título e a imagem da capa.
“Não está mais aqui quem falou” é uma expressão utilizada, geralmente, quando alguém diz algo incômodo, que gera desconforto e, logo em seguida, procura desculpar-se ou isentar-se do que disse, dizendo esta curiosa expressão. Como assim, não está mais aqui? Onde a pessoa foi parar, então, e o que houve com o que foi dito?
Na literatura, entretanto, esse “não estar mais aqui” é bem apropriado. Quem diz o quê? Onde está quem disse? Continuo na vontade de bagunçar autor e personagem, fato e ficção, conforto e desconforto.
Mas não tem graça a autora explicar o título.
Não está mais aqui quem falou.
E a capa. Um ovo e uma maçã.
O leitor vai encontrá-los num dos contos do livro.
Vai entender.
Mas posso adiantar.
Não existe nada mais real do que um ovo e uma maçã. Nem mais absurdo. Nem mais espantoso.
Esse livro é uma quase piração. Digo “quase” porque a considero sã.
Mas não está mais aqui quem falou.