Leonardo Martinelli foto.Rafael Viegas.Divulgacao

 

Convidamos a poeta e tradutora Marília Garcia a dividir a experiência de editar o livro Má formação, de Leonardo Martinelli. O livro foi recentemente lançado pela Luna Parque – da qual Marilia é editora, juntamente com o poeta Leonardo Gandolfi.

As questões que tornam a edição singular são desenvolvidas no texto. À exceção de uma nota e de sinalizações para as imagens, o que segue abaixo foi publicado conforme enviado pela autora. 

 

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“Sim, é claro, estou exagerando”, diz um verso do livro Má formação e ouvimos a voz de Leonardo Martinelli (foto acima) por detrás deste verso, com bastante humor e também certa crueldade consigo mesmo. A vontade que tenho é de dizer, “é claro, eu também estou exagerando”. Se começo esse texto com a memória, é claro que exagero, se deixo o afeto transbordar, é claro que estou exagerando. Conversar com o Leo aqui seria um modo de entrar no diálogo e de responder à poesia dele ao modo dele, mas talvez seja preciso um ponto de vista mais distanciado para poder falar do livro.

Assim, começo contando que, ao criar a Luna Parque, em 2015, fizemos um making of no site da editora com textos sobre o processo de criação da editora. A série “processual” durou pouco, mas agora, para falar sobre a edição do livro Má formação, de Leonardo Martinelli (1971-2008), a necessidade do making of se recoloca. Este projeto teve uma particularidade: foi uma edição póstuma de um poeta com o qual convivi. Como falar sobre o assunto?

Fiquei um pouco dividida com a situação. Por um lado, pensando no poeta e na convivência que tivemos; por outro, tentando manter o distanciamento. Esta mesma divisão esteve presente ao longo da produção do livro: como ler estes poemas com olhar distanciado, mas tendo, ao mesmo tempo, de conviver com a memória?

Tento me esgueirar por entre os caminhos, seguindo “as nódoas corriqueiras da sua poesia”, como diz outro verso, onde a gente pode espreitar “o mundo inteiro” e onde ainda é possível manter a conversa com o poeta, professor, crítico e amigo.

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Conheci o Leonardo Martinelli em 1997, quando comecei a graduação em Letras na UERJ, e fui sua aluna durante um ano. Numa resenha sobre o Dedo no ventilador (2005), seu primeiro livro, a poeta Lu Menezes faz um retrato certeiro dele, que eu acho que descreve bem a primeira impressão que Martinelli causava nas pessoas:

“Quando vi Leonardo Martinelli pela primeira vez, no corredor de uma universidade carioca, sua vivacidade fisionômica me fez distraidamente associá-lo a um roqueiro convertido à academia. E por quê? Afinal, a sobriedade externa deste jovem poeta – também compositor, guitarrista e crítico literário – soprava que, no palco, continuaria não atrelável a clichês. Como no livro de estreia. Desde o título, Dedo no ventilador revela a excepcionalidade esquiva a escaninhos com que Leonardo se desloca na contramão da poesia a priori ‘poética’.”

Se seu primeiro livro já vinha na contramão dos clichês e da poesia “poética”, este novo já é, de saída, mal formado, exagerado, fracassado e impiedoso. A “Receita para curar o fracasso” ou os poemas da série “Dum-duns” seriam os mais óbvios nesse sentido. Mas o deslocamento de clichês em sua escrita tem várias camadas e mantém um diálogo estreito com a própria tradição que ele está cutucando. Como no poema “A máquina do mundo cão”, que amplia as formas de conversar com essa tradição.

Ao longo desses anos, tivemos uma convivência intermitente. Numa das últimas conversas, ao telefone, ele contou do livro novo que estava preparando. Queria concorrer a uma bolsa da Petrobras Cultural para finalizar o projeto e me mandou o arquivo com os poemas. Na época, eu trabalhava na editora 7letras e lá preparamos, para este edital, uma carta de aceite para a publicação do livro. Quando saí da editora, acabei perdendo todos os emails, incluindo aquele com o arquivo do livro em andamento.

Em 2015, o Leandro Salgueirinho, que era amigo próximo do Leo e que viria a organizar o volume Má formação, me enviou seus textos inéditos em livro. Além do material crítico e acadêmico, havia poemas e letras de música. Salgueirinho não encontrou um arquivo único do livro, os poemas estavam soltos, tinham sido enviados por email ou deixados por Martinelli numa pasta no computador do amigo.

Uma das primeiras dificuldades encontradas foi na montagem do livro: qual seria a ordem dos poemas? E o que entraria nele? A ordenação cronológica foi logo descartada, pois as datas não eram facilmente identificadas e, num volume curto, de 22 poemas, isso era decisivo. Optou-se por critérios subjetivos, com momentos mais óbvios, como o “Last poem” para fechar o volume, ou os dois poemas que eram parecidos e, de algum modo, podiam sugerir uma espécie de reescrita entraram espelhados, lado a lado (“À prova de” e “Eau de toilette”). Também optou-se por não incluir as letras de música, pois destoavam do conjunto de textos.

Entre os poemas, alguns pareciam antigos, até mais antigos do que o primeiro livro dele, não só pelo tom diferente, mas também porque o nome dos arquivos estava corrompido; provavelmente a passagem desses arquivos de um computador antigo para outro mais novo danificou o nome deixando uma marca temporal neles. Estes poemas não foram incluídos.

Havia também o blog que Martinelli manteve ao longo de seu último ano intitulado Má formação. Durante 7 meses, ele fez 28 postagens que incluem vídeos, notas, resenhas, listas e, sobretudo, parte de seus poemas inéditos, muitas vezes acompanhados de textos e imagens, como o “Last poem” que fecha o livrinho que editamos e que, no blog, vem com um comentário sobre Pergunte ao pó, de John Fante, citado no poema. O humor e o tom autoderrisório dos poemas estão mais acirrados nos textos do blog e muitas vezes essas postagens podem complementar a leitura dos poemas. Vale a pena uma visita: http://maformacao.blogspot.com.br/.

Assim, o título veio do blog, que continha parte desses poemas e, afinal, tinha sido dado pelo próprio autor. Além da deformação física, este título também sugere uma condição gauche em outros campos e os poemas que o compõem têm, de fato, como fio condutor o tema do fracasso, da penúria, do pesadelo. Muitos deles tratam do assunto direta ou indiretamente, como a morte sofrida da cadelinha Hanna, o pesadelo na escadaria, as aventuras dos poemas adictos, o epitáfio.

Mas mais do que isso, o que chama a atenção nesses poemas é a seriação que atravessa todo o livro, fazendo com que possamos ver de diversas maneiras um tema, uma forma, um tipo de procedimento; fazendo com que o livro caminhe e se desdobre por várias camadas de leitura. Além do recurso da numeração, presente em muitos poemas (“Um vira-lata”, “Receita...”, “Sweet Lou Reed”), há as elegias ou ainda algumas imagens como as três torres em dois séculos, que são lidas por um viés classificatório.

E, sobretudo, o uso do endereçamento poderia ser visto como um exercício de seriação. Ele se multiplica e aparece em quase todos os textos, seja dentro dos próprios poemas, em diálogos com amigos, escritores, músicos; seja nas dedicatórias do livro (em sua maioria, com iniciais); seja na própria forma dos poemas: “Canção para Carl Solomon”, “Carta a um jovem poeta”, as elegias com as iniciais que indicam o diálogo (“Elegia / ACC”, “Elegia / JW” e “Elegia / JC”), a receita. É curioso que haja muitas formas e gêneros no livro e quase todos com um destino. De certo modo, estão em contínua travessia para o outro.

As elegias formam um gênero à parte. No título ele inclui as iniciais de seu interlocutor, de quem o poema trata. Se a elegia é um canto triste, claramente a morte não está de lado nesses textos, sobretudo na elegia para Ana Cristina Cesar, em que a crueldade para tratar do salto da poeta e das homenagens prestadas acaba se voltando contra o próprio poema, que também se quer homenagem.

Ainda uma curiosidade ligada às dedicatórias do livro. Durante a produção, conversamos com alguns amigos de Martinelli para saber se havia outros poemas inéditos dele e percebemos que alguns — como a “Máquina do mundo cão” —estavam dedicados a amigos diferentes. Era como se ele estivesse dialogando ao mesmo tempo com pessoas diferentes e, ao enviar o poema para cada um dos interlocutores, incluísse uma dedicatória específica. Em alguns casos, a diferença entre as versões era apenas a dedicatória, gesto que, por si só, já traria uma leitura diferente para um poema com tantas implicações como este.

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Por fim, volto ao dia do lançamento do meu primeiro livro, em 2007 [nota 1]. Leonardo Martinelli chegou cedo na livraria Berinjela e ele já tinha lido meu livro, estava com o exemplar anotado e sublinhado e o deixou em cima da mesa para eu dedicar. Eu não sabia que o livro estava lido e anotado. Fiz uma foto dele, que segue abaixo, dentro da vitrine da livraria, olhando fixamente para a câmera. O exemplar do Leo ficou sobre a mesa durante o todo o lançamento e, no meio da confusão de livros, eu acabei me enganando e dedicando a ele outro exemplar, sem as anotações. Só soube do meu engano quando a Angélica Freitas, que neste dia estava lançando seu Rilke Shake, me escreveu para contar que eu dedicara a ela um exemplar “comentado”. Ela mandou uma foto do livro e eu reconheci a caligrafia, era o exemplar do Leo. Fizemos outra troca de livros, mandei um exemplar novo para ela e, desta vez, o exemplar dele veio ficar comigo. E acabo com esta imagem, do meu livro anotado por ele voltando pra mim por meio de dedicatórias desviadas, um endereçamento possível, dele pra mim, meu pra ele. Talvez uma forma de manter a conversa e compartilhar, ainda, o presente.

 

Martinelli1 cortesia MGarcia

 

 

Martinelli2 cortesia MGarcia

O poeta durante o lançamento do livro, em 2007

 

 

NOTAS

[nota 1] Do Suplemento Pernambuco: 20 poemas para o seu walkman (Cosac Naify, 2007)