Qualquer pessoa que empreende sozinha uma nova tradução da Bíblia tem de ter a coragem das suas convicções. No meu caso, não se trata tanto de convicções religiosas, pois embora tenha sido educado como católico, não sou hoje membro de nenhuma igreja e não me revejo em nenhuma religião. Gosto, no entanto, do estudo das religiões, algo que me fascina desde criança. E mesmo sem ser formalmente cristão, o estudo que mais me apaixona é o estudo do Novo Testamento, que para mim tem a enorme vantagem de ter sido escrito em grego e de constituir, para todos os efeitos práticos, um marco fundamental na história da literatura grega.
Dentro do Novo Testamento, a minha primeira paixão foi o estudo dos quatro Evangelhos. Assim, este projecto de tradução da Bíblia começou simplesmente como o projecto de fazer uma nova tradução dos Evangelhos, anotados e comentados de uma perspectiva crítico-histórica. Este aspecto é muito importante, pois dei-me conta de que em Portugal fazia falta essa perspectiva. Sendo um país maioritariamente católico, em Portugal as pessoas acham que o estudo da Bíblia é o estudo da interpretação teológica católica da Bíblia. Pensei que era muito importante as pessoas terem noção de que os textos que a compõem têm realidade independente da interpretação católica que deles é feita. Na mesma medida, existem também como realidades históricas independentemente da leitura protestante. Senti que quem se interessa pela história do Cristianismo de uma perspectiva apenas histórica e académica precisaria de instrumentos em língua portuguesa para prosseguir esse estudo, fora do âmbito das Bíblias católicas e protestantes.
Tendo o projecto começado com enfoque exclusivo no Novo Testamento, rapidamente me apercebi do interesse enorme em traduzir para português o Antigo Testamento grego, conhecido como Septuaginta. Isto porque a Septuaginta era a Escritura dos primeiros cristãos, como vemos pelo facto de as citações do Antigo Testamento no interior do Novo Testamento partirem do texto da Septuaginta. Dado que o texto grego do Antigo Testamento apresenta muitas diferenças em relação ao texto hebraico, pensei que seria fundamental as pessoas terem a possibilidade de conhecê-lo como era lido, pelos primeiros cristãos: em grego.
Neste momento, os dois volumes referentes ao Novo Testamento já foram publicados em Portugal. No Brasil, já saiu o primeiro volume, que contém os Quatro Evangelhos (publicado pela Companhia das Letras). Encontro-me a trabalhar na tradução do Antigo Testamento, que está a ser uma aprendizagem extraordinária. Ao mesmo tempo, devo dizer que a minha paixão pela problemática do Novo Testamento e pela história dos primeiros séculos do Cristianismo não para de crescer. Estou certo de que, quando acabar a tradução da Bíblia, me voltarei a dedicar ao estudo do Novo Testamento.
Muitas pessoas me têm perguntado se o trabalho sobre a tradução da Bíblia não tem causado na minha cabeça uma reaproximação relativamente às igrejas cristãs. Até hoje isso não aconteceu. O principal efeito tem sido a mudança nos meus interesses no que toca à literatura grega. Sou professor de Grego na Universidade de Coimbra desde 2009. Antes disso, ensinei durante 20 anos na Universidade de Lisboa. Publiquei em Portugal e no Brasil traduções da Ilíada e da Odisseia e escrevi bastante sobre literatura grega clássica. Hoje, não obstante a paixão continuada pelos autores gregos clássicos, é a literatura em língua grega dos primeiros cristãos que me prende. Penso que tão cedo não me vai largar.
Uma das grandes dificuldades de traduzir a Bíblia é a sua extensão: requer uma disciplina muito grande. Há livros no Antigo Testamento que são gigantescos: os livros dos profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel; e também livros como Génesis ou Êxodo. Outro bloco colossal é constituído pelos Salmos. De um modo geral, a língua portuguesa presta-se bastante bem a este trabalho, porque muitas vezes consigo manter a ordem das palavras que está na frase grega. Isto poderá ajudar pessoas que futuramente se interessem por ler a minha tradução da Bíblia grega acompanhando a leitura com uma edição do texto em grego. Tal como no caso da tradução que fiz de Homero, prezo muito a literalidade: na minha opinião, a obrigação do tradutor é de transmitir de forma tão rigorosa quanto possível o que está na língua original.
Hoje em dia, espalha-se cada vez mais a ideia de que a tradução da Bíblia pode ser dinâmica, espelhando já a interpretação teológica que dela possam fazer protestantes ou católicos. Isto veda o acesso ao que está realmente no texto às pessoas que não dominam as línguas antigas. Uma tradução da Bíblia não se deve pautar, a meu ver, pela vontade de dar a ler um texto em português fácil de entender. O critério deve ser rigoroso. Na minha opinião, uma boa tradução portuguesa da Bíblia deve ser uma porta de acesso à letra do texto (com todos os seus problemas em termos de transmissão manuscrita): deve permitir às pessoas que não lêem grego (ou hebraico) um acesso ao texto tão próximo quanto possível daquele que têm as pessoas que dominam essas línguas. A missão do tradutor, para mim, é essa. A minha tradução da Bíblia é para leitores inteligentes: porque todo o esforço do meu trabalho se baseou no respeito pela sua inteligência.