Na caixa de mensagens do meu e-mail, encontro uma espécie de diário – e lembro porque resisto tanto a apagar minhas correspondências, a despeito da insistência do provedor em me avisar que estou sem espaço. Ler minhas “cartas” sobre A história incompleta de Brenda e de outras mulheres de uma só vez me ajudou na reconstrução de um processo longo e intenso de um livro que tem por centro a narrativa de histórias de vida de outras pessoas (mulheres trans e travestis), mas que, de maneira inevitável, fala complexamente sobre mim, sobre processos de escrita e publicação e sobre como um livro político se insere tanto nos espaços literários como nos espaços de militância.
Decido começar pelo começo:
Dia 18 de março de 2013 é a data da correspondência mais antiga que encontrei na minha busca sobre o meu livro. Lá, leio-me dizer que escreveria uma série de 10 reportagens. Entre pesquisa, entrevistas, fotos, edição e diagramação, estimava terminar em três meses e meio. Rio internamente diante da impermanência e subestimação do trabalho: nem 10, mas, sim, 11; nem reportagens, mas, sim, contos de não ficção. Ao invés dos três meses e meio, mais de três anos até a publicação, no Rio de Janeiro, em novembro de 2016.
Anne me fez aumentar o número de histórias em um, porque desistiu de desistir. Somente quando o original estava em minhas mãos, recebi o seu aceite. A mudança do formato de reportagens para o de contos aconteceu naturalmente, à medida em que passei a desacreditar na noção de “verdade”. O próprio ato de lembrar é uma experiência narrativa de criação. Recontar e encadear ideias muitas vezes se torna tão mais real quanto mais é inventado. Não estou dizendo com isso que abandonei o compromisso com o vivido por elas, mas que assumi a tarefa de criar em conjunto. Com isso, preciso dizer que todas os contos foram lidos por elas em primeira mão e que tudo que me foi pedido para ser alterado ou omitido foi acatado.
Quando recebi o convite do Núcleo Integrado de Saúde Coletiva da Universidade de Pernambuco para integrar esse projeto, não tinha dimensão de para onde me levaria - além do livro, o material virou uma exposição de fotografias, uma série de 10 curtas-metragens e em breve virará um longa. Uma das minhas convicções iniciais, contudo, partia do peso que eu atribuía ao processo de feitura. Entendia que, além da transformação na esfera pública que o livro poderia causar quando lido (e eu desejava que causasse), existia uma instância silenciosa, íntima e confidente, pouco traduzível e, talvez, pouco valorizada, que era a do encontro. O próprio ato de contar sobre si e o próprio ato de escutar sobre o outro já seriam experiências transformadoras extremamente potentes, que me permitiram ter a certeza de estar me apresentando como aliado. Dessa dimensão do encontro, surgiram experiências que misturaram arte e vida, trabalho e amor.
Volto aqui ao meu “e-mail-diário” em 1º de agosto de 2013:
“As histórias que eu escutei até agora são fascinantes. Me fizeram ressignificar muita coisa dentro de mim. Me sinto, de verdade, com um material tão importante, tão precioso, que dá até medo”.
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Escrever um livro sobre pessoas trans e travestis sendo um homem cisgênero, ainda que gay, além de me possibilitar a transformação a partir do encontro com um “outro”, inseriu-me nos debates de “representatividade” e de “lugar de fala”. Fez com que eu repensasse intensamente meus papeis como escritor e como sujeito que se deseja comprometido na transformação social. Alguns reconhecimentos são necessários porque descortinam desigualdades estruturais: a minha socialização cis masculina me concedeu privilégios que, ao final, me permitiram tornar-me jornalista, escritor e artista visual, ao mesmo tempo em que reservava a noite e a prostituição como único espaço possível para a maioria delas. Além disso, é necessário não esquecer que habitamos o país que mais mata mulheres trans e travestis no mundo.
O protagonismo da luta das questões referentes a gênero e de todas as minorias é, e deve ser, das pessoas que as vivenciam em seus corpos (eis a máxima do respeito ao lugar de fala). Mas o reconhecimento dessa afirmação não pode ser entendido como conivência com uma realidade opressora. A possibilidade de empatia e o desejo de somar forças nessa resistência coletiva me parecem essenciais. Desse meu lugar, cabe-me o compromisso com a representação afirmativa, humana e respeitosa de grupos sociais estigmatizados, sabendo que o simbólico é convertido em real. Ou que a realidade humana é simbólica.
Não é por acaso que pessoas trans estão ausentes da maioria dos produtos de arte. Nada mais coerente com uma sociedade transfóbica do que o veto das representações e memórias das pessoas trans em livros, filmes e novelas. Pior: em alguns espaços, a representação da transexualidade vem carregada de estereótipos que reforçam estigmas. Um livro centrado na biografia e experiência trans - em suas complexidades, especificidades e universalidades, que parte dos relatos de vida delas, não corrigirá um déficit histórico, mas está engajado com a mudança possível do presente.